“Fui eu e o Tony [Friel] que escolhemos The Fall, por causa do livro do Albert Camus [A Queda]. Ele queria que nos chamássemos The Outsiders por causa de outro livro do Camus [O Estrangeiro]; mas já tinha lido O Estrangeiro e não tinha gostado. Para mim A Queda era melhor. Mas houve um período em que fomos os The Outsiders. Até que encontrei um 7” em Shudehill dos The Outsiders, uma banda dos 1960s: ‘A Question Of Temperature’ era o título da canção. Bom disco. Isso significou que teríamos de ser os The Fall. As interpretações do nome são sempre estranhas, funcionam em diferentes níveis. As pessoas religiosas de meia-idade interpretam como a queda do homem; muitos americanos encaram-no como o início do fim da música rock – as pessoas sérias, não estou a falar dos maluquinhos; e os fãs russos vêem como um golpe de vingança contra o comunismo.”

Mark E. Smith conta isto na sua autobiografia editada em 2008: Renegade: The Lives And Tales Of Mark E. Smith. Muito se pode ler nesse parágrafo. Há uma tentativa democrática de explicar a escolha do nome, mas nas entrelinhas percebe-se que The Fall “era melhor” e que a decisão só passaria por Mark E. Smith. Ele era os The Fall (e, para facilitar, sempre que escrevo “The Fall” quero dizer “Mark E. Smith”), o único membro constante desde a formação (em finais de 1976), que contratou e despediu mais de seis dezenas de músicos, muitos deles a serem corridos em menos de um ano. Tony Friel? Saiu (é um eufemismo) em 1978.

A capa da autobiografia de Mark E. Smith

E pode-se interpretar a leitura do nome, por diferentes grupos, como uma visão individual do que eram os The Fall, nascidos na explosão do punk-rock britânico já a virar para o pós-punk, com uma atitude e sonoridade que recusava a pertença a qualquer autoridade de catalogação ou de género. Pode-se ouvir em Dragnet (1979) ou em Hex Enduction Hour (1982) variações de pós-rock à The Fall. Só que eram isso, “à The Fall”, onde o combo guitarra-bateria falava nas absorções de Mark E. Smith e companhia da leitura de Can, The Velvet Underground, dos seus contemporâneos This Heat ou do free jazz que lhes chegava ao norte de Inglaterra.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[“Before The Moon Falls”:]

E se ouvir os The Fall é um acto (quase) individual, onde cada um pode encontrar e construir a sua história, sem a necessidade de referenciar pilares na sua imensa discografia (que existem, claro que existem) — mais de três dezenas de álbuns de estúdio, e dezenas e dezenas de registos oficiais ao vivo e compilações — é normal que cada um encontre forma de enfiar os The Fall na vida. Ou tornar The Fall na vida, banda-obsessão, numa relação exemplarmente saudável entre a música/Mark E. Smith e o mundo. E daí talvez não. Mas não nos devemos meter na vida dos outros.

É por isso que é difícil soletrar a importância de uma banda que teve pouco sucesso comercial e cuja persistência é um caso de teimosia como feitio numa realidade de permanente mudança (e com o rock constantemente a voltar aos 1980s, ao som dos The Fall) e no qual os The Fall sempre soaram a eles próprios. Foram um caso existencial no rock das últimas quatro décadas, numa época de “retromania” e de nomes que regressam para reanimar carreiras e alimentar nostalgias, passaram esses anos sem precisar do desenterro. Viviam na certeza da eternidade do rock. E, quem ouvia a música, com a clareza da imortalidade disso tudo. A existência de nova música, digressões e o normal-ar-de-velho de Mark E. Smith, próprio de quem encontrou o Santo Graal no álcool e nos cigarros, eram a história da história, de algo que existe com a justificação de existir.

60 anos. Mark E. Smith morreu com 60 anos. Eu não sabia a idade dele e nem conseguia configurar isso. Para mim foi um gajo com cara de velho no corpo de jovem, uma figura de fantasia, vá, tipo goblin, gentilmente (salvo seja) grotesco no qual não dá para pôr um número. Mas os números estão certos, nasceu a 5 de março de 1957 e morreu na manhã de 24 de janeiro de 2018. Não levou nada com ele. Ficou a música. E muitas garrafas por esvaziar.

Prestei atenção a sério aos The Fall quando li, numa reportagem do Fernando Magalhães a propósito de um concerto dos Tortoise (não me lembro se no Público ou no Fórum Sons que existia no site), a referência a como era frequente tocarem “Repetition” durante largos minutos nos seus concertos:

Isso accionou qualquer coisa na minha cabeça, de como ali poderia encontrar um elo de ligação entre Steve Reich, Glenn Branca, o pós-rock e o “Spiderland” dos Slint (a guitarra-bateria dos The Fall 1977-82 está lá), com o qual construí uma relação obsessiva. Seguiram-se idas às lojas de discos em segunda mão e um ratear dos discos de mil escudos/cinco euros (eram tempos de transição). Trouxe para casa Bend Sinister (1986), I Am Kurious Oranj (1988), The Light User Syndrome (1996), Sinister Waltz (compilação de 1996) e um 12” de “Cab It Up” (1989). Referências sinistras para iniciados.

Serviu. E serviu para os enquadrar com o que ouvia: pelas suas influências e influência, exercício maravilhoso quando pegamos num disco de rock. Foi por aí que, com uns amigos, fundei um site de música (A Puta da Subjectividade, podem vasculhar os ossos por aqui) e passado meses decidimos que seria incrível convidar um conhecido letrado nos The Fall para assinar uma coluna. Assim nasceu “Northern White Crap That Talks Back” (no início da carreira Mark E. Smith tinha o hábito de começar os concertos com esta frase), artigo mensal em que Nuno Camarinhas contava a história e a sua história com os álbuns de The Fall. Cronologicamente.

Conhecemos, meses depois, o Nuno durante um concerto de The Fall (CCB, 29 de setembro de 2003). O Grande Auditório era uma sala demasiado grande para eles, desconfortável no pré-concerto. A sugestão de lugares marcados era uma anedota. As pessoas entravam, sentavam-se nas letras e nos números dos respectivos bilhetes e todos sentiam o desconforto de não saber exactamente o que fazer quando o concerto começasse: isto é, se era para levantar, seguir em frente e ver o concerto em pé ou ficar sentado. A audiência cabia no espaço entre o palco e a primeira fila. A esta distância ainda sinto esse desconforto. Que desapareceu quando os The Fall subiram ao palco (nem foi preciso som): levantei-me, como toda a gente, e enchemos o vazio em frente de Mark E. Smith. Em pé. Não foi a anarquia, não foi o caos. Foi natural. E no final do concerto o Nuno forneceu a setlist do concerto que decorou graças a anos de vivência com os The Fall. Ainda hoje está para nascer a aplicação capaz de fazer isso tão eficazmente.

É esse tipo de dedicação que The Fall provocava em alguns. Mapear uma existência através de uma carreira controlada por Mark E. Smith, dispersa em incontáveis (parecem incontáveis) álbuns, compilações, registos ao vivo e singles. E quem quisesse caminhar nesse universo estaria um passo atrás, com uma inveja a terceiros pelos The Fall ocuparem um lugar, uma obsessão, diferente e incompleta, nas suas vidas. Existia o desnorte de por onde começar (pelo início, claro), da sensação de se estar a perder algo, de não haver tempo. Foi o FOMO (“Fear Of Missing Out”) antes do FOMO. E Mark E. Smith era indiferente a isso. Continuava a tocar e a editar.

E ou se acompanhava ou não. Mesmo para esses, um concerto dos The Fall era imperdível (o meu último foi no Out.Fest em 2013, dez anos e poucos dias após a primeira vez, agora que penso nisso). Para inventariar a existência de Mark E. Smith e recolher essa lição de que um homem é uma filosofia. Mark E. Smith e, por associação, os The Fall eram isso. Com o tempo, e a idade, agarrei-me aos álbuns que mais me comunicavam o pós-punk e o pós-rock (Dragnet, Grotesque (After The Gramme) (1980), Hex Enduction Hour e partes de Perverted By Language (1983). E nunca esquecerei aquela vez em que estava a passar música e escolhi “Cab It Up”:

– O que é que estás a passar?
– The Fall.
– Parece LCD…

Pois parece.