Título: “Bilac Vê Estrelas”
Autor: Ruy Castro
Editora: Tinta da China

Batido no trabalho biográfico, Ruy Castro dá aqui um passeio pela ficção. É um divertimento, na forma e no conteúdo, este Bilac Vê Estrelas, editado pela Tinta da China. Parte de figuras reais para as enovelar numa narrativa burlesca passada na Belle Époque do Rio de Janeiro, envolvendo o poeta, contista e jornalista Olavo Bilac e o seu amigo José do Patrocínio, personalidade decisiva no movimento abolicionista no Brasil. O protagonista, Bilac, histórico cultor do parnasianismo no país, eleito pela revista Fon-fon “o príncipe dos poetas brasileiros”, é posto numa situação que inclui um dirigível imaginado por Patrocínio e cobiçado por dois aeronautas franceses, Eduarda Bandeira, uma espiã portuguesa com um “lindo sotaque lisboeta, cortado por gargalhadas francas e musicais” e Maximiliano da Gama, “mineiro, padre e bon vivant”.

O autor de Chega de Saudade – A História e as Histórias da Bossa Nova não abandona a sua vocação biografista. As figuras nesta novela são reais, fruto de pesquisa e estudo, mas há delírio na trama. E comédia. Como aqui: “Tentando disfarçar o estrabismo, Bilac decidiu passar o resto da vida de perfil”. Ou na descrição da sala de uma vidente famosa em Paris: “O ambiente já seria quase irrespirável se não fosse agravado pelo odor que se desprendia de Madame Labiche elle-même: um misto, talvez, de bodum de tarântula com urina de perereca”.

Olavo Bilac

Após uma espécie de introdução desenhada com o fito de dar umas pinceladas sobre um certo Rio de Janeiro do início do século XX, passado nas confeitarias (em especial na Colombo), e de uma notícia, manifestamente exagerada, da morte de Patrocínio, a narrativa encontra o seu gatilho quando este partilha com o comparsa o seu objectivo de deixar uma marca no mundo: “Só me resta coroar minha vida com uma façanha que provará definitivamente o gênio do homem brasileiro”. Faz uma pausa antes de rematar:

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“Estou construindo um balão”. No gesto aponta como exemplo Santos-Dumond, com o seu aeróstato, que descolara de Saint-Cloud para contornar a torre Eiffel e no fim pousar no Jardin d’Acclimatation. Diz: o seu balão voará à noite, a uma velocidade ainda mais rápida do que aquele. E com maior resistência e leveza. Bilac primeiro desconfia, mas depois entusiasma-se, e muito, manifestando o seu contentamento em laudatórias prosas de jornal. E até comenta, à mesa, impressionando os comensais, que “os dirigíveis são a poesia entre nuvens”.

Depois vem a cobiça dos planos alheios por parte dos dois ambiciosos de serviço, nomeados como Deschamps e Valcroze. E é com a intervenção destes que entra na acção a espiã lusitana, que, depois de ter sido discípula de Gabriele D’Annunzio, manteve amoroso relacionamento com um tal de Alfred Jarry. Não é esse o único nome de enciclopédia a figurar nestas aventuras. Em Paris – cidade importante aqui, além do Rio — a história faz-se de outros encontros. Bilac embate em Gertrude Stein quando a autora transporta fruta para inspirar quadros de Picasso e Juan Gris e ainda janta faisão com Georges Méliès.

Entre necessidades materiais para prosseguir a empreitada e maroscas para surripiar trabalho alheio, aprofunda-se a narrativa. Tratando-se de Ruy Castro, que além de ter escrito as famosas biografias de Nelson Rodrigues, Carmen Miranda e Garrincha, é o autor, entre outros, do livro de textos curtos, crónicas e contos, Amestrando Orgasmos (Objetiva, 2004), há, ocasionalmente em Bilac Vê Estrelas uma forma directa, desabrida, de contar a lascívia. Num livro em que Eça de Queirós é uma referência (Bilac vem a Lisboa abraçar a estátua do escritor e acaba a mirá-la com a maior das admirações), existe uma cena de sexo envolvendo um padre que, no momento, faz um recital em latim. O verbo é solto e o palavreado descomplexado. Segue, sempre fluente, para contar alguma ocorrência ou fazer uma observação divertida.