Dois adolescentes que decidem fugir da vida que têm em direção a uma outra que desconhecem por completo. E daí? Como se isso fosse uma preocupação. Como diz o outro, interessa mais o caminho do que o destino, é mais ou menos isso. E para James e Alyssa, interessa tudo o que não seja a verdade deles, o dia a dia de cada um, as famílias que não querem, as emoções que não acontecem. Nada seduz, nada surpreende, nada deixa sonhar — na verdade, nada deixa coisa nenhuma, porque tudo acaba onde começa.

É por isso que os dois fogem, de carro, numa mistura de sonho juvenil com hedonismo destrutivo. Ou como dizem as coisas da internet, essa sábia dos assuntos em geral, trata-se de um cruzamento bonito entre “Moonrise Kingdom” e “Assassinos Natos”. Não é de Wes Anderson nem de Oliver Stone. É uma série da Netflix, de oito episódios, que tem conquistado generoso sucesso mas que começou há uns anos como livro de banda desenhada.

[o trailer de “The End of the F***ing World”:]

https://www.youtube.com/watch?v=vbiiik_T3Bo

O autor é Charles Forsman, autor de 35 anos que só queria fazer uma nova história sem ter que pensar muito nela. O resultado tem tanto de entretenimento como de lição de vida, dependendo de quem vê, mas para Forsman continua a ser apenas um comic. Rebeldia adolescente com a música certa, a atitude que uns quantos adultos gostavam de ter e episódios que de tão certeiros e curtos se tornam viciantes. Falámos com o artista e começámos como habitualmente se começam estas conversas, teve de ser:

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Como é que surgiu a história de The End of the F***ing World?
Quando acabei o meu primeiro livro, Celebrated Summer, estava cansado de fazer páginas longas com muitos detalhes. Por isso, quando comecei The End of theF***ing World quis tentar o contrário, sobretudo em relação ao método, aos aspetos formais do livro. A ideia que tinha era a de fazer alguma coisa rápida, à primeira, sem interrupções. Sem me deixar ficar preso, sem querer fazer nada perfeito, pensar só na página seguinte. Acho que juntei isso à origem da história.

A capa de “Celebrated Summer”

Que apareceu como?
A partir de um desenho que tinha feito num bloco de rascunhos que usava na altura. Era um miúdo a fazer um kick flip num skate. Esse miúdo transformou-se no James e construí uma história em volta dele. Ou melhor, em volta daquilo que achava que ele podia ser.

Detalhes autobiográficos incluídos ou nem por isso?
É quase sempre pura ficção. Muita da emoção, dos sentimentos associados ao James são coisas que senti em alguma altura da vida, são coisas que conheço bem. Outros detalhes estarão relacionados com pessoas verdadeiras. Diria que é autobiográfico até onde pode ser, que é muito pouco. Mas é como estas coisas costumam funcionar, não é?

É difícil não acabar o livro ou a série sem fazer a pergunta: “Este tipo estava a tentar ensinar-nos alguma coisa?”
Acho que nunca pensei nisso, muito menos quando estava a escrever e a desenhar o livro. Na verdade… no geral não tenho qualquer objetivo filosófico na minha vida ou no meu trabalho. Espero que isto não pareça um enorme vazio existencial, é apenas o que é. O que me interessa realmente é fazer algo que goste. E tentar muito, mesmo muito, que isso tenha alguma relação com a vida real, com emoções reais. Até porque se fosse mais longe do que isso, fazer banda desenhada não seria tão divertido como é. E tem de ser divertido.

5 fotos

Como é que a televisão entra nesta história?
O Jonathan Entwistle, que realizou e produziu a série, comprou alguns dos mini comics na Gosh!, uma loja em Londres, e pouco depois enviou-me um email a dizer que gostava de fazer um filme a partir daquela história. Ele fez umas primeiras curtas, como exemplo, e eu pensei “claro, vamos a isto, vamos tentar”. Acho que no início não levei a coisa muito a sério. Mas depressa percebi que algo muito interessante podia acontecer. Agora que penso nisto, esta história começou talvez em 2012. Foi há muito tempo, mas aconteceu mesmo. Acho que foi como ganhar a lotaria.

O Charles serviu como consultor para a série?
Oficialmente não. E achei ótimo que a produção pudesse fazer as coisas como queria, à maneira deles. Não queria que ficassem presos a uma adaptação imagem por imagem, palavra por palavra ou algo do género. Tinha que ter uma identidade própria. Ainda assim, o Jonathan fez sempre questão que eu acompanhasse o processo e soubesse como tudo estava a acontecer. Ele ligava-me e falávamos sobre muitos detalhes da produção. É por isso que digo que fiz parte do processo, mas não de forma oficial.

[James e Alyssa, os protagonistas da história:]

E quando viu o resultado final?
Achei incrível, fui completamente arrebatado. Durante todo o processo de produção já tinha a ideia que estavam a fazer uma coisa muito boa mas quando vi os primeiros episódios… durante todo o tempo ou estava a chorar ou a rir.

O que lhe pareceu a escolha de atores?
Pude acompanhar uma semana da rodagem, conheci a Jess [Jessica Barden, que interpreta Alyssa] e o Alex [Lawther, que faz de James] e são pessoas fantásticas. Atores e pessoas fantásticas, é mais isso. Melhor ainda quando pude vê-los e ouvi-los a dizer frases que inventei sozinho à secretária.

O final dos oito episódios respeita o final do livro. Mas fica no ar a dúvida sobre o que acontece. Haverá uma nova temporada?
Não sei, vamos ter de esperar para ver. [Jonatha Entwistle entretanto já afirmou que a continuação está mesmo a ser estudada]

Outro dos elementos fundamentais para a série é a banda sonora.
A banda sonora… adoro a banda sonora, tanto a música original como as canções escolhidas para determinadas cenas. Foi o Matt Biffa que supervisionou todo esse processo e fê-lo com um bom gosto insuperável. Porque nenhum momento parece forçado ou desajustado, nada, parece tudo certo, tudo faz sentido. A melhor canção será a “Settin’ the Woods on Fire”, do Hank Williams, na cena da dança. Usei esse tema nos mini comics originais, depois quando fiz o livro completo tive que a substituir por outra. Estava com medo de ter problemas em relação aos direitos porque usava uma boa parte da letra… espero que um dia possa voltar a incluir a canção.

[a cena da dança, com a canção de Hank Williams:]

E além do Hank Williams, o Graham Coxon…
Epá… sim. Que sonho. Quando me disseram que ele ia fazer parte de tudo isto, acho que fiquei uns segundos sem respirar, nem soube como reagir. Os Blur nunca chegaram a ser muito grandes na América mas eu sempre fui um enorme fã. É difícil até explicar, porque nunca tive amigos que os ouvissem… mas eu sempre adorei. O Graham é um dos meus guitarristas e compositores favoritos. De sempre.

E os Blur ainda podem ser a melhor banda de sempre… pelo menos hoje, não?
Vão ser sempre. Há poucos dias encontrei o meu vinil do Parklife, que julgava meio perdido. Juro que chorei. Juro.

[“Walking All Day”, de Graham Coxon:]

Assuntos que interessam: está a vender muito mais livros agora, não?
Sim, claro. Houve uma altura em que andava um pouco preocupado… porque a série não é animada, não há nehuma indicação de que tudo aquilo vem de um comic. Mas o editor disse-me que as vendas estão a correr muito bem. Aliás, há mais traduções a caminho porque a série tem sido um sucesso em países que não falam inglês, como Portugal, por exemplo. É como se o livro tivesse uma segunda vida e isso é fantástico.

E agora?
Agora estou a trabalhar numa coisa nova, uma história em diferentes capítulos com o título AUTOMA. Claro, agora toda a gente quer saber se isso vai dar uma série… não faço ideia no que é que isto vai dar.