O Ministério Público (MP) defendeu esta quinta-feira que os 19 militares acusados no processo relativo ao 127.º curso de Comandos, no qual morreram dois instruendos, devem ir todos a julgamento, mantendo na íntegra o despacho de acusação.

“Trata-se de crimes cometidos por militares contra militares durante uma prova do curso de Comandos. [Os arguidos] Abusaram dos deveres funcionais e da disciplina militar. Provocaram graves lesões físicas e neurológicas nos ofendidos e, em duas situações, a morte de dois subordinados”, sustentou a procuradora do MP, Cândida Vilar, durante as suas alegações finais no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, no qual decorre a fase de instrução do processo.

Da lista dos 19 acusados por abuso de autoridade por ofensa à integridade física no processo desencadeado pela morte dos recrutas Hugo Abreu e Dylan Silva e pelo internamento de outros constam oito oficiais do Exército, oito sargentos e três Praças, todos do Regimento de Comandos.

“Acredito que têm orgulho na farda que vestem, mas neste caso concreto, e dos elementos recolhidos nos autos, e pelas testemunhas que ouvi, os médicos que consultei, as perícias médicas realizadas e os relatórios da autópsia só posso concluir que os arguidos aqui presentes cometeram os crimes, porque não se conseguiriam conter, não quiseram dar água, negaram água aos instruendos e mandar rastejar sobre as silvas não faz parte de qualquer guião”, sublinhou a procuradora do MP, na presença de quase todos os arguidos.

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Assim, a procuradora Cândida Vilar defendeu que “há indícios suficientes para pronunciar [levar a julgamento] todos os arguidos”, e deu “por reproduzida” toda a acusação.

“No primeiro dia de instrução exigiram aos instruendos aquilo que não se pode exigir a nenhum ser humano. Há dois militares que morreram por desidratação extrema. É inaceitável e completamente incompreensível que não exista um termómetro. Tinham por obrigação exigir um termómetro. Todos podemos resistir e há alturas em que temos de resistir. Aprender a dizer não. Não é uma rebelião, não é uma insubordinação. Era dizer que estava em causa o estado clínico dos instruendos”, acrescentou a procuradora do MP.

Cândida Vilar congratulou-se com as alterações que desde o 127.º curso de Comandos o Exército levou a cabo, nomeadamente dar mais do que os três litros de água previstos à data dos factos, altura em que havia temperaturas elevadas.

“É absolutamente necessário arrefecer o corpo. Perante esta situação, gravosa, apercebem-se de que os ofendidos estão mal e não bebem água. A privação do sono e a privação de água, o esforço físico, desta violência, só poderia ter como resultado a falência de órgãos. As provas foram alteradas, já não há prova zero. Infelizmente duas pessoas tiveram de morrer para acabar a prova zero. A prova da sede. A sede clinicamente não se treina, não se pode treinar”, sustentou a procuradora do MP.

A instrução é uma fase processual facultativa que visa a comprovação ou o arquivamento por um juiz da acusação da acusação do MP, cabendo ao juiz decidir se leva ou não os arguidos a julgamento. Em junho do ano passado, o MP acusou 19 militares no processo relativo à morte de dois recrutas dos Comandos e internamento de outros, considerando que os arguidos atuaram com “manifesto desprezo pelas consequências gravosas que provocaram nos ofendidos”.

“Os princípios e valores pelos quais se regem os arguidos revelam desrespeito pela vida, dignidade e liberdade da pessoa humana, tratando os ofendidos como pessoas descartáveis”, indica a acusação assinada pela procuradora Cândida Vilar.

A acusação refere que, ao sujeitarem os ofendidos a essa “penosidade física e psicológica” durante a recruta efetuada em setembro de 2016, todos os arguidos sabiam que “excediam os limites” permitidos pela Constituição e pelo Estatuto dos Militares da Forças Armadas e “colocaram em risco a vida e a saúde dos ofendidos, o que aconteceu logo no primeiro dia de formação.

Dois recrutas morreram e vários outros receberam assistência hospitalar durante o treino do 127.º Curso de Comandos, na região de Alcochete, distrito de Setúbal, a 4 de setembro de 2016.

Defesa das famílias diz que Comandos “falharam” aos instruendos

As defesas das famílias de Dylan da Silva e de Hugo Abreu, que morreram durante o 127.º curso de Comandos, disseram em tribunal que os arguidos “falharam” no dever de proteção dos instruendos, pedindo julgamento para todos.

“Cabia aos senhores [arguidos] saber quando é que deviam parar [a instrução]. O facto de estes jovens, nomeadamente os dois que morreram, quererem ser Comandos, só vos devia obrigar a ser mais exigentes no cumprimento dos vossos deveres jurídicos. Vocês falharam”, afirmou Ricardo Sá Fernandes, advogado da família de Hugo Abreu, durante as alegações finais no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, no qual decorre a fase de instrução do processo.

O advogado da mãe de Dylan da Silva, Miguel Santos Pereira, corroborou a seguir a ideia de Ricardo Sá Fernandes. Ambos pediram à juíza de instrução criminal que profira despacho de pronúncia (que leve a julgamento os 19 arguidos), elogiando a acusação do Ministério Público (MP).

“Muito escrupulosa, muito rigorosa [a acusação]. Houve um esforço muito grande de fazer uma especificação dos dados factuais. Esta acusação não é nula e está em condições de seguir para julgamento”, afirmou o advogado da família de Hugo Abreu, que criticou a postura dos arguidos durante a instrução do 127.º curso de Comandos.

Vocês tinham o dever jurídico de zelar pela sua saúde, de impedir que eles fossem mal tratados. Não cumpriram esse vosso dever”, acusou Ricardo Sá Fernandes.

Segundo o advogado, os arguidos, em algumas situações atuaram por “omissão”, e noutros cometeram mesmo os crimes e os factos que constam da acusação do MP.

Bater nos instruendos, mandar rastejar para as silvas, dizer palavras que os humilhavam, meter terra na boca como aconteceu com o Hugo Abreu, não tiraram a temperatura a estes jovens, não mandaram suspender estes exercícios. Não foram capazes de mandar evacuar aqueles jovens”, lamentou Ricardo Sá Fernandes.

Para o assistente no processo é essencial que “não se banalize o mal” e por isso pediu que os culpados sejam condenados em julgamento.

É muito importante que não se banalize o mal. Este processo também tem a ver com a maldade. Haja julgamento e aqueles que têm responsabilidades concretas, que sejam condenados os culpados, pela memória do Hugo Abreu, do Dylan, por nós, pelas nossas famílias, pelo nosso país”, sublinhou Ricardo Sá Fernandes.

O advogado da mãe de Dylan da Silva pediu igualmente julgamento para todos os arguidos, frisando que estes terão de viver “com os factos” que ocorreram.

“Cabe-vos a vocês, Comandos, escolher o que será o futuro do Regimento de Comandos. Não só, mas muito por força do 127.º curso, não são bem vistos, não só no seio das Forças Armadas, mas também na sociedade”, vincou Miguel Santos Pereira, apelando para uma mudança de mentalidades na forma como se dá a instrução no curso de Comandos.