É provável que, fora do circuito académico ou dos meios literários, a maior parte dos portugueses não saiba quem foi este António Maria Lisboa, que morreu de tuberculose num quarto alugado na Graça, no longínquo ano de 1953 com apenas 25 anos. A obra que deixou é curta, fragmentária, hermética, onde a filosofia e a poesia se juntam para lançar as bases de um novo mundo.

Contudo foi o mais radical dos surrealistas portugueses, não apenas porque lançou as bases teóricas do movimento na sua vertente abjecionista, mas também porque, como nenhum outro ele lhe entregou o próprio corpo, a própria vida. No ano em que o poeta faria 90 anos e passam 65 sobre a sua morte, Joana Lima, investigadora, e a editora Colibri atrevem-se a publicar o primeiro livro sobre a obra deste neófito: António Maria Lisboa, eterno amoroso.

No momento em que a poesia ganha definitivamente o estatuto de objeto de consumo rápido, veja-se como proliferam as antologias de poemas, é a poesia na sua versão “fé em deus” como se de batatas se tratasse. Num gesto que contraria a poesia “fast food”, a pequena editora Colibri aceita o risco de publicar uma investigação académica densa, que não cede nunca ao facilitismo ou aos apelos românticos da vida deste jovem, tão amado por Mário Cesariny, cultuado por António José Forte e Luiz Pacheco, cuja biografia insiste em fugir entre os dedos da perseguem e onde só a obra fala.

Joana Lima seguiu os passos de outras investigadoras que já tinham trabalhado sobre a obra de Lisboa, como Tânia Martucelli, Isabel Cambra e Maria João Cameira, mas adentrou-se pelo lado mais hermético do poeta, procurou desvendar-lhe os símbolos, encontrar novas pistas de leitura através daqueles que foram as fontes matriciais do poeta: a alquimia, as religiões pré-clássicas, as mitologias ocidental e oriental mas também os surrealistas franceses, com André Breton à cabeça.

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“António Maria Lisboa, Eterno Amoroso”, de Joana Lima. Edições Colibri

Ao contrário do que o título pode sugerir aos incautos, “eterno amoroso” não tem nada que ver com o romantismo, mas é uma das fases do percurso iniciático desenhado por Lisboa, que devia ser percorrido pelos poetas para chegarem à iluminação, ao conhecimento, ao absoluto. Joana Lima desvenda-nos este caminho, os seus desvios, as suas contaminações e mostra-nos como, de facto, é grandiosa a poesia de Lisboa, toda a cultura acumulada num espírito de apenas 25 anos, que teria poucos estudos escolares, que vinha de famílias modestas. Mais: este livro mostra-nos como cada verdadeiro poema é um caminho, uma rede de ligações, fusões, antinomias, sínteses, contradições, onde a identidade do poeta — o seu nome — é o que menos interessa, porque a poesia não é um veículo de identidades, vaidades, mas de conhecimento e de construção de uma ética libertadora de todos os homens.

“Navegamos por águas longe e pelo nevoeiro. A bordo do nosso navio fantasma SOMOS O QUE SOMOS e ao nosso redor apenas o chapinhar das águas misteriosamente calmas de encontro ao casco nos impressiona e informa. Acreditamos que jamais o homem será escravo enquanto houver um só Poeta, isolado e ignorado que seja, a reclamar a si mesmo a decisão ou indecisão magníficas.

O homem não é um “animal”. Esta catalogação é um erro da Biologia.

Agrada-me profundamente saber que eu estou num ponto do Universo que necessita ser esticado para o lado de fora, quero dizer: para a minha frente. Se rebentar é a minha mais profunda aspiração que foi satisfeita!

O Futuro é tão antigo como o Passado. E ao caminharmos para o Futuro é o Passado que conquistamos!”
(AML, “Certos Outros Sinais”)

No momento em que os poetas surrealistas (curiosamente, o mesmo não se passa com os pintores) estão a ser efusivamente redescobertos, esse justo reconhecimento corre o risco de fazer deles tudo o que eles jamais terão querido ser: poetas do sistema, de alguma maneira. Será curioso ver se a poesia de António Maria Lisboa, onde conflui a linguagem surrealista mais radical com a alquimia, o hermetismo, cuja dimensão simbólica a torna um objeto difícil, será também redescoberta ou se continuará no limbo. De qualquer forma, não importa, porque como Fernando Pessoa, Hermes de Trimegisto, Isadore Ducasse ou Rimbaud, Lisboa sabia que para os neófitos não há morte.

Quem é António Maria Lisboa?

Grupo Surrealista de Lisboa, António Maria Lisboa, ao fundo da sala encostado à coluna, na 1ª exposição do grupo em 1949

Os escassos dados biográficos não permitem reconstituir a sua curta vida, podia ter sido mais uma criação dos próprios surrealistas, este menino de rosto anguloso que Cruzeiro Seixas achava belo e fotografou neste ângulo (foto acima) em que os ossos salientes fazem antever a sua face morta — podia ser Osiris, filho de Isis, deuses da mitologia egípcia que tanto o influenciou.

Osiris, o primeiro homem mumificado e depois aquele em quem se tornavam todos os que morriam. Pode ter sido uma reencarnação de Isadore Ducasse, morto aos 24 anos, também ele sem biografia mas com uma poética do Mal, do crime, da transgressão, que foi incorporada no percurso iniciático concebido por Lisboa, onde, como explica Joana Lima, “o Mal é entendido como fundamental ao desenvolvimento histórico”. É no poema que escreve sobre Maldoror que Lisboa sintetiza brilhantemente todo o Surrealismo na ideia de “imagem louca”.

Sabemos que fez parte do 2º grupo Surrealista, conhecido como Grupo Surrealista de Lisboa, que era amigo de infância de António Risques Pereira, que foi apresentado a Mário Cesariny por Pedro Oom num café da avenida da República. Que em 1948 fundam o grupo, do qual faziam parte Henrique Risques Pereira, Mário-Henrique Leiria, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa e Fernando Alves dos Santos.

“Isso Ontem Único” foi editado por Luiz Pacheco já depois da morte do poeta

Como testemunham alguns dos surrealistas neste documentário da RTP, de 1978, que se pode ver aqui, Lisboa era um portento intelectual que intimidava os outros, por vezes irascível inconstante, mas também com um humor constante e “mauzinho”, como afirma Mário-Henrique Leiria. Nesse final dos anos 40, viviam todos de forma bastante precária, tinham vagos trabalhos, nunca havia dinheiro, nem casa própria, viviam nos cafés, juntavam a custo “7 réis para a bica” ou dinheiro para Cesariny apanhar o ultimo elétrico para casa. Mas, sobretudo, andavam a pé, passavam horas nas livrarias a folhear livros que não podiam comprar.

Pelo meio, dedicavam-se a atividades surrealistas que consistiam em insultar certas pessoas na rua, fazer passeios pictóricos, andar com os seus quadros, esculturas, etc às costas, pela rua, escreviam folhas volantes, faziam “cadáveres-esquistos” e, é claro, sonhavam com Paris, a pátria do Surrealismo. Era certamente uma Lisboa poética muito diferente da atual, ou igual apenas na existência de grupos e grupinhos, farpas, quezílias, amuos, disputas, vaidades, como se pode ver nas cartas que AML escrevia de Paris aos companheiros, compiladas no volume da Assírio & Alvim que reúne toda a sua obra, e que também tem edição de bolso na BI.

Edição de bolso da obra reunida de António Maria Lisboa

Hoje, a nossa vida num regime democrático, numa sociedade de consumo, de costumes liberais e veículo próprio, dificilmente pode perceber no osso como se convivia diariamente paredes meias com a fome, a falta de tudo, a impossibilidade de sonhar um futuro para lá desta circunstância e, ainda assim, não se vender a nenhum amo. Foi como uma estratégia de sobrevivência que Lisboa criou então as bases do Abjecionismo, com Pedro Oom, mas numa linha diversa deste e até das bretonianas. Pois onde Breton colocava a pureza como ideal, Lisboa colocava a sobrevivência que visa superar a angústia e a abjeção, que era a situação política e cultural portuguesa. O Abjecionismo teorizado sobre as bases do surrealismo vai ter em Lisboa o seu mais corajoso protagonista, como escreve Mário Cesariny no prefácio à obra de AML

“Por muito que a sintamos válida e sedutora, nada percebemos da violenta sinceridade de António Maria Lisboa se não percebermos nela o acréscimo por rutura que é o seu abandono das formas e das fórmulas, por que tem subsistido o pensamento ocidental(…)”

Ora esse abandono das formas rigidamente fixadas no “Penso, Logo Existo” de Descartes era uma das ambições dos surrealistas, que consideravam uma teoria que dá jeito “aos que têm medo do escuro”, como diz Cesariny. Lisboa não tinha medo da noite, dos mistérios, e por isso escolheu caminhos menos fáceis e onde é quase sempre noite, como os misticismos desse oriente a Oriente do Oriente que já fascinara Álvaro de Campos e que será também fundamental a Manuel de Castro.

Virás ao saberes da existência do Surreal quando os homens furiosamente afirmam
a sua vida, quando das paredes derruídas vêm palavras estranhas e preveem o futuro
hieróglifos indecifráveis inscritos nas pedras dos túmulos te indicam (…)”
(AML, “Isso, Ontem, Único”)

Se não podemos conhecer bem os caminhos da vida de Lisboa, com o livro de Joana Lima ficamos a conhecer o percurso da sua filosofia poética que se dividia em três etapas: Plano Circunvalado, Iniciação, Estrela. Entre a primeira e a terceira etapa, Lisboa terá contraído tuberculose, provavelmente na sua primeira incursão a Paris, às escondidas da família, sem ter quaisquer condições financeiras para permanecer na capital francesa. A dureza desses dias merece-lhe vagos apontamentos, pois nas cartas que escreve para Lisboa tudo o que lhe interessa contar são os encontros e desencontros com os surrealistas franceses, as promessas, o deslumbramento com as experiências que vivia.

Nessa religião postulada como poesia, AML faz de cada poeta um “novo amoroso”, entregue ao devir, que procura a poesia como conhecimento, como o alquimista procura a pedra filosofal. Esse devir só era compatível com o fragmento, por isso essa é a forma como a obra de Lisboa se apresenta. Por isso, a morte não existe. O poeta está aquém e além da morte.

Depois de diagnosticada a doença e ciente da sua gravidade, a família conseguiu que fosse internado num sanatório. Mas o poeta não se mantém lá tempo suficiente para se curar. Cesariny conta que quando ele vai pela segunda vez para Paris já tinha um pulmão destruído e essa viagem, de novo sem quaisquer condições, foi-lhe fatal. Mas, apesar dessa convivência com a morte próxima, a sua poesia não se torna dramática, angustiada, mas sim cada vez mais solar, mais virtuosa, mais potente “como se ele criasse a expensas da morte”, dirá Mário Cesariny. Uns dirão que teve uma vida suicida, outros que morreu asfixiado por este país, outros ainda que foi surrealista ou abjecionista, simbolista, anjo. Ele dirá que “tudo é possível até a nossa própria vida.”

Sabe-se que a mãe teve que ir trabalhar para África para lhe poder pagar o quarto na Graça, para que ele pudesse morrer com dignidade. No dia 11 de Novembro de 1953, deixou esse corpo espúrio e putrefactível ao qual ele sabia não pertencer e tornou-se estrela, cometa onde a Liberdade, o Amor e o Conhecimento se cumpriam, se tornavam matéria do Universo e ele um eterno amoroso.

Antes de entrar na leitura do texto que me trouxe aqui, não quero deixar no vosso esquecimento a vinda dos NOVOS AMOROSOS que sairão num dia próximo da última estrela deste universo e hão-de aparecer revestidos de plumagem de pássaros numa cratera minúscula aberta numa flor. Quem os vir reparará com espanto nos jogos novos em que eles forçosamente estarão empenhados e nos voos magníficos que farão para além dos montes próximos. Desconhecem o presente, o passado e o futuro porque se conhecem tão intimamente que o tempo não vem e, se viesse, viria fundido num só movimento de mão ou num leve repousar de cabeça. Filhos do sol e da Lua , nasceram do Fogo e para o Fogo(…)”,
(AML, “Erro Próprio”)