Título: Confissão de um Assassino
Autor: Joseph Roth
Editor: Cavalo de Ferro
Páginas: 144
Preço: 13,99€

Logo na primeira página de Confissão de um Assassino, num dos muitos exemplos do enorme talento de Joseph Roth, o narrador diz-nos que na parede do restaurante russo onde Semion Semionovich Golubchik contará a sua história “havia um relógio de metal. Umas vezes estava parado, outras vezes marcava a hora errada. O seu propósito parecia ser não o de assinalar o tempo, mas o de o ridicularizar”. A meio do romance, Roth regressará a esta ideia ao dizer que os ponteiros pareciam estar parados “não porque o relógio deixara de funcionar, mas porque obedeciam a um desígnio pérfido, como se quisessem dizer que a história de Golubchik era de uma eterna e irremediável recorrência, independentemente do tempo e do espaço” (p. 84).

Este foco no relógio parado serve a Roth, então, para explicar ao seu leitor que a história de Golubchik é muito mais importante do que a simples história do filho bastardo do príncipe Krapotkin que, cego pelo desejo de ser reconhecido pelo seu pai, bem como pela vontade de se vingar do rapaz adoptado por este, se torna espião da polícia secreta do czar. Golubchik afirma a certa altura que a vida política e a vida pública são, no final de contas, apenas o resultado de paixões privadas, sendo, portanto, as desventuras de uma qualquer pessoa a coisa mais importante do mundo, ou, para ser mais preciso, a origem do mundo. Precisamente nesse sentido, o dono do restaurante, depois de ouvir toda esta história, dirá: “O que há de estranho na vida? Ela não faz mais do que nos fornecer histórias comuns” (p. 138).

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Roth quer assim, mais do que contar a história do Golubchik que gostava de ser Krapotkin, contar a história do mundo inteiro, contar-nos a nossa história. Só desta forma se torna possível compreender que o escritor não pareça minimamente preocupado com as incoerências, inverosimilhanças e impossíveis coincidências contadas no livro, para as quais aponta sem nunca se apoquentar com elas. A atenção que Roth ostensivamente nega à história que conta, será oferecida, contudo, às descrições cuidadosas que faz. Contrariando a sabedoria popular, Roth repetirá várias vezes que as palavras são muito mais importantes do que os actos por serem entidades criadoras do mundo e por perdurarem, o que não acontece com as acções, uma vez que até os cães são capazes e que rapidamente são esquecidas. Fiel a essa ideia, as descrições tenderão a ser extraordinariamente rigorosas, como quando escreve: “houve um dia- ou, melhor dizendo, uma noite; ou, para ser ainda mais preciso, uma madrugada” (p. 10).

Todavia, o enorme rigor descritivo nunca livrará essas descrições de bastantes contradições, uma vez que, para Roth, o mundo é um lugar absolutamente contraditório e os homens só podem ser descritos como “Bons e maus. Maus e bons. Nada mais do que seres humanos.” (p.64). Este parece ser o aspecto fundamental da visão antropológica de Roth em que toda a gente está em tensão entre duas possibilidades: os europeus são descritos como os filhos mais amados do Deus cuja existência teimam em renegar, Lakatos como um coxo de andar gracioso e, essencialmente, Golubchik, o filho do “guarda florestal Golubchik” (que se refere, aliás, ao pai adoptivo sempre nestes termos) que quer ser aristocrata, o assassino que se considera, ainda assim, bom homem, o russo europeu, o céptico orgulhoso que vê em todo o lado o diabo e seus sequazes.

A conversão relativamente tardia de Joseph Roth, filho de um casal judeu, ao catolicismo é também crucial para a compreensão do livro. Golubchik parece ser incapaz de cumprir a sua vontade de se tornar num devoto do agnosticismo. No entanto, o cristianismo que o persegue assenta apenas numa ideia de mal, de pecado original, que não se consegue apagar. À medida em que a sua confissão se desenvolve, Golubchik descreve-se como cada vez mais afundado nos seus pecados, como alguém que procura desesperadamente uma redenção, mas que sempre que encontra uma forma de se redimir é arrastado de volta para a lama de onde não consegue escapar. A bondade, entrevista apenas por duas vezes durante a história, mais do que uma porta de salvação, é vista como uma força que destrói Golubchik, que se chega a descrever como alguém sem a pureza suficiente para poder matar.

Nos dois momentos em que personagens judias (haveria, aliás, muitas coisas a dizer sobre o lado político e de denúncia do anti-semitismo do romance de Roth que não cabem nesta recensão) são verdadeiramente boas, por contraste com a podridão do mundo de Golubchik, o filho do guarda-florestal não se sente transportado para uma qualquer felicidade celeste. Pelo contrário, quando o preso judeu que entregara à polícia secreta o beija, Golubchik, aqui no papel de Judas, confessa que “ainda hoje sinto a queimadura daquele beijo na minha cara”.

A profissão de Golubchik é também ela instrumental para a descrição que Roth aparenta querer fazer do mundo. A meio da sua confissão, o espião da Okhrana afirma que “não existe uma só lei que possa receber o qualificativo de benigna; e em nenhum lugar do mundo existe justiça absoluta. A justiça, meus amigos, só existe no Inferno!” (p.51). Poucas linhas à frente, acrescentará que “naquele momento estava decidido a instalar o Inferno na Terra, ou seja, tinha sede de justiça”. A estranheza de afirmações como estas dilui-se nas explicações dadas anteriormente, se a isso se acrescentar o peculiar facto de Golubchik ser um assassino que nunca matou ninguém.

Se a descrição mais acertada de todos nós é a de pessoas que não conseguem livrar-se do egoísmo, da ambição e da tentação em geral, então uma profissão cujo fim último seja o de trazer a justiça através da revelação de todas as nossas acções trará inevitavelmente a condenação, fechando a porta à pequena possibilidade de redenção. Se somos todos criaturas em tensão entre a bondade, que nunca atingiremos, e o erro, ao qual não conseguimos escapar, então tudo o que for passível de trazer justiça ao mundo será apenas uma maneira de instalar o Inferno na Terra, de nos colocar ao nível de Golubchik. Se, como o sábio David Byrne nos avisa, somos todos criminosos que nunca violámos a lei, então é na cadeira eléctrica e não no maple de sala que nos devemos sentar.