A Lei do Cinema que o governo se prepara para aprovar representa uma “cedência aos tubarões das telecomunicações”, classificou o realizador João Salaviza, em entrevista ao Observador. “Empresas com lucros de centenas de milhões de euros por ano vão continuar a controlar o pouco dinheiro que vai para o cinema, dinheiro que essas mesmas empresas pagam através de taxas. Numa analogia, é como se as equipas de futebol nomeassem os árbitros dos jogos, e isso é corromper o que deveria ser uma lei justa para o cinema”, afirmou o realizador, de 33 anos – já distinguido com o Urso de Ouro no festival Berlim, com a curta Rafa, e a Palma de Ouro em Cannes, com a curta Arena.

As palavras de Salaviza dão eco à velha guerra no cinema português em torno do modelo de financiamento e atribuição de subsídios públicos. Nos últimos anos, o problema tem-se centrado num pormenor da Lei do Cinema de 2013, o artigo 14º, o qual estabelece quem são os júris dos concursos de financiamento promovidos pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA).

João Salaviza é um dos que contestam as regras em vigor, segundo as quais os júris são nomeados por um órgão consultivo do governo, a SECA (Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual), em que participam produtores, realizadores e técnicos de cinema, mas também representantes dos canais de televisão generalista e operadores de distribuição, como a Meo/Altice, a Vodafone ou a Nos.

Em conversa com o Observador, a propósito da participação no Festival de Cinema de Berlim, que abre esta quinta-feira, dia 15, João Salaviza mostrou-se igualmente descontente com a proposta de revisão da lei de 2013. Porque as regras para nomeação de júris vão ficar praticamente na mesma. Se a versão final da lei corresponder à proposta apresentada ao setor a 16 de novembro do ano passado – proposta que o Governo não quis tornar pública –, os júris passam a ser nomeados pelo ICA, mas só depois de a SECA ser consultada, o que tem a oposição da Plataforma das Estruturas de Cinema, onde se reúnem a Associação Portuguesa de Realizadores, a Associação Pelo Documentário, a Agência da Curta-Metragem, o Indie Lisboa e o Sindicato dos Músicos, Profissionais do Espetáculo e do Audiovisual, entre outros.

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Subsídios ao cinema atribuídos pelo ICA têm origem em taxas cobradas a canais de TV e operadores de cabo

João Salaviza afirmou que a nova Lei do Cinema “está a ser cozinhada com algum secretismo” e “por muito que a Plataforma das Estruturas de Cinema tente apresentar propostas elas não são acolhidas”, nem pelo ICA nem pelo Ministério da Cultura, que tutela a área.

“O diálogo com o Estado não tem funcionado bem. Tudo indica que será mais uma lei de cedência aos tubarões das telecomunicações”, disse João Salaviza. “Os filmes autorais, que tantas vezes são denegridos por essas empresas de telecomunicações, são os que ficam na história e deixam rasto. Nem preciso de falar de Manoel de Oliveira, Pedro Costa ou João Pedro Rodrigues, posso referir a minha geração, que está cheia de realizadores com trabalho sério e continuado. A nova Lei do Cinema pode vir a impedir que o cinema de autor continue a existir em Portugal.”

Os subsídios atribuídos pelos concursos do ICA não saem do Orçamento do Estado, mas são dinheiro público: têm origem em “taxas de exibição” cobradas pelo Estado sobre a publicidade exibida em salas de cinema e canais de televisão, qualquer que seja a plataforma. Os operadores de televisão por cabo também pagam taxas (3,50 euros por cada novo cliente), as quais revertem para ICA e para a Cinemateca Portuguesa.

A nova Lei do Cinema não mexe na questão das taxas. Mas continua a dar poderes à SECA na escolha dos júris que decidem quem recebe ou não subsídios. A presença na SECA de produtores de televisão, exibidores e operadores de televisão por cabo representa uma “ingerência de interesses privados num sistema público de apoios”, sustenta a Plataforma das Estruturas de Cinema.

A possibilidade de operadores como a Meo/Altice, a Vodafone e ou a Nos proporem ao ICA quem vai escolher projetos cinematográficos a subsidiar condiciona o resultado dos concursos, porque leva à nomeação de jurados que optem por obras consideradas comerciais e que possam ser exibidas em canais de TV ou salas de cinema detidas pelos operadores, entende a Plataforma.

Por seu lado, as televisões privadas e as empresas de distribuição de TV por cabo recusam júris nomeados apenas pelo ICA, porque isso torna o processo “permeável a favorecimentos e a faltas de isenção”.

A nova lei está em “circuito legislativo” e “deve entrar em vigor nos primeiros meses do ano”, informou o ICA. Mas ainda não há data prevista para aprovação em Conselho de Ministros, segundo Rita Castel-Branco, assessora de imprensa do secretário de Estado da Cultura.

No Bairro do Aleixo

Tal como há um ano, o assunto pode vir a marcar a participação portuguesa no Festival de Berlim, que decorre entre 15 e 25 de fevereiro. Russa, o novo filme de João Salaviza, é uma das três curtas portuguesas na Berlinale. As outras são Onde o Verão Vai (Episódios da Juventude), do estreante David Pinheiro Vicente; e Madness, de João Viana, com quem o Observador não conseguiu contactar. Competem na secção de curtas 22 filmes oriundos de 18 países. No júri vai estar Diogo Costa Amarante, que no ano passado ganhou o Urso de Ouro em Berlim para Melhor Curta, com Cidade Pequena.

[trailer de “Russa”]

Correalizado pelo brasileiro Ricardo Alves Jr., Russa tem 20 minutos de duração e foi rodado no Bairro do Aleixo entre maio e julho de 2017. É resultado de um convite da Câmara do Porto, no âmbito do programa Cultura em Expansão. “Foi-nos dada carta branca e quisemos fugir dos lugares mais evidentes, interessou-nos uma geografia que é cruelmente esquecida”, explicou João Salaviza.

“O filme mostra uma irmã que regressa a casa, no Bairro do Aleixo, durante uma saída precária de dois dias. Enquanto ela esteve na prisão, aconteceram várias coisas e foi demolida a segunda das cinco torres de habitação do bairro. Ela regressa a um espaço de memória e de afeto que está a ser aniquilado”, descreveu o realizador. “As personagens autorepresentam-se no filme, mas há uma camada ficcional que lhes dá uma certa proteção para poderem falar e existir diante da câmara. O filme é uma ficção que trabalha sobre a realidade, apropriámo-nos da realidade e escrevemos a história a meias com a protagonista e a irmã.”

A destruição das torres de habitação do Aleixo, um dos bairros sociais do Porto, originou esta curta “com um sentido de urgência muito grande”. “Quase que me atrevo a dizer que é um filme militante”, resume João Salaviza, também autor do argumento, ao lado de Ricardo Alves Jr., Renée Nader Messora e Germano Melo.

“Não é apenas o tema da luta pelo direito à habitação, é mais do que isso. A destruição de um bairro não implica só as casas, é uma destruição dos afetos e dos laços entre uma comunidade. No Brasil, com as devidas distâncias, aconteceu algo muito semelhante. Em nome de negócios de especulação imobiliária de altíssimo valor, destruíram-se bairros inteiros para construir estádios de futebol para o Campeonato do Mundo de 2014. Em Portugal, fruto do turismo e da explosão no imobiliário, começa acontecer o mesmo e, obviamente, os fracos e os pobres são esquecidos. As torres do Bairro do Aleixo têm uma vista belíssima para o Douro. E o que se pergunta é se os pobres não podem viver com uma vista belíssima para o rio.”

Russa teve exibição em dezembro no Teatro Rivoli, no Porto, e passa em Berlim na sexta, dia 16. “Espero que a estreia em Berlim sirva para gerar discussão sobre o processo de desmantelamento em curso no Bairro do Aleixo e para tornar este assunto ainda mais público e mais amplo”, sublinhou o realizador.

Terceira geração

No júri de Curtas da Berlinale vai estar este ano o português Diogo Costa Amarante, de 35 anos, juntamente com o realizador e curador americano Mark Toscano e a realizadora e professora sul-africana Jyoti Mistry. Ao anunciarem o nome do português, em janeiro, os organizadores do festival de Berlim classificaram-no como “membro da terceira geração de realizadores portugueses”.

[excerto de “Cidade Pequena”, de Diogo Costa Amarante]

Ao Observador, em resposta por correio eletrónico, Diogo Costa Amarante explicou que “depois de uma primeira geração, ligada ao Novo Cinema Português, e de uma segunda geração, que decorre da criação da Escola Superior de Teatro e Cinema, a terceira geração poderá corresponder aos realizadores que têm vindo a afirmar-se mais recentemente”. Há “pontos de contacto e linhas de continuidade” entre estas três gerações, mas também “pontos de rotura” e “sobretudo uma grande dissemelhança de percursos autorais” e uma “grande diversidade de visões”, explicou.

Questionado sobre o porquê de haver mais curtas-metragens portuguesas do que longas a concurso em festivais internacionais, o autor de Cidade Pequena respondeu que isso se deve ao facto de se produzirem mais curtas em Portugal. No que pode ser entendido como uma crítica genérica às políticas públicas para o cinema, e não só à Lei do Cinema, Diogo Costa Amarante acrescentou:

“Se houvesse apoio à produção para mais longas metragens, certamente teríamos neste momento mais longas portuguesas em competição em festivais internacionais de cinema. Quando tanto se fala do sucesso incontestável das curtas-metragens portuguesas no circuito dos festivais internacionais de cinema, não deixa de ser surpreendente ou até contraditório que esse sucesso, tão celebrado pelos decisores nacionais, se traduza numa redução sistemática do apoio à produção de primeiras obras. Para se ter uma ideia, neste momento apenas duas primeiras obras de longa metragem são apoiadas anualmente pelo Estado, o que é manifestamente desproporcionado face ao número de novos realizadores.”

Outra das curtas portuguesas em Berlim é de David Pinheiro Vicente, de 21 anos, que acaba de terminar a licenciatura em Cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Onde o Verão Vai (Episódios da Juventude) é um filme de 20 minutos, feito em contexto académico, como projeto final de curso, e filmado no verão do ano passado em Sintra.

“Um grupo viaja no verão para uma floresta à beira de um rio”, descreveu o realizador. “Existe uma tentativa de descoberta, uma certa ambiguidade em alguns comportamentos, e talvez por isso alguns falem em temática queer. Sobretudo, é um filme sobre não se saber onde se está e para onde se vai”, resumiu.

Além destas curtas, o contigente português na Berlinale inclui Mariphasa, de Sandro Aguilar; The Tree, de André Gil Mata; Our Madness, de João Viana (os três na secção não competitiva Forum); e ainda Na Floresta, de André Santos e Marco Leão (no programa paralelo Project Labs).