Jürgen Klopp, o técnico alemão que se começou a destacar no Borussia Dortmund antes de aceitar uma experiência na Premier League no comando do Liverpool, é uma daquelas figuras engraçadas e muito particulares que consegue transformar a conferência mais aborrecida do mundo em qualquer coisa que não esquecemos durante algum tempo. Mas, muitas vezes, fixamo-nos apenas nisso. E mal: o germânico pode ter saída hilariantes, pode ter aqueles óculos que lhe dão um ar peculiar e pode ter uma postura divertida no campo, mas também sabe de bola e tem os seus méritos no plano desportivo. Ele e a equipa técnica, do principal adjunto aos observadores dos adversários.

Neste último caso, há uma história que foi contada pelo Record esta semana e merece ser recuperada: James French, um dos responsáveis por entregar a Klopp o resumo das principais características do FC Porto, nasceu em Portugal. Em 1986, os pais mudaram-se para o nosso país e abriram uma clínica médica em Cascais, onde o agora observador dos reds nasceu há 31 anos e cresceu. Outro ponto curioso? “Quando acabei o secundário, trabalhei seis meses como assistente do Miguel Silva, responsável de Educação Física da escola primária onde tinha andado. O Miguel Silva, que descobriu o Eric Dier e o levou para o Sporting, deu-me a oportunidade de ser seu adjunto na AFD Torre”. Seguiu-se um curso de Biologia na Escócia, uma mudança para Ciências do Desporto, estágios no Swansea e na seleção do País de Gales, um mestrado em Treino e Performance e… o Liverpool.

Foi uma aventura, que aqui trazemos não por ser merecedora disso mesmo por si só mas porque foi aqui que começou a chave da goleada do Liverpool frente ao FC Porto no Dragão. Uma goleada que ninguém poderia prever antes do encontro mas que ninguém pode contestar no final. A diferença entre os azuis e branco e os reds é esta, de 5-0? Não, de maneira nenhuma. Mas quando os dragões ficam com os pontos fortes completamente anulados e o conjunto de Liverpool consegue fazer prevalecer as suas principais mais valias, corre-se esse risco.

Como já percebeu, falamos aqui da chave do jogo: na primeira parte, um super eficaz Liverpool teve o condão de anular não só as principais individualidades portistas do momento por motivos distintos (Brahimi e Marega) mas também de secar por completo o atual coração dos dragões, formado por Herrera e Sérgio Oliveira; no segundo tempo, um eficaz Liverpool (não super, porque ainda teve algumas ocasiões mal finalizadas) conseguiu esconder os seus defeitos (situações de transição defensiva) para explorar a sua principal virtude: as transições ofensivas.

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Durante algum tempo, o Liverpool ficou conhecido como a “equipa Moneyball do futebol”. O que é isso? O conceito vem de Billy Beane, diretor desportivo dos Oakland Athletics que conseguiu fazer grandes equipas de basebol através de um sistema inovador de estatísticas que permitia recrutar jogadores que eram desvalorizados pelo mercado mas que acrescentavam muito à equipa. Essa ideia foi depois adotada por muitos outros conjuntos e o livro desse fenómeno transformou-se mesmo num filme, interpretado por Brad Pitt. Um deles, os Boston Red Sox, conseguiu quebrar um longo jejum de 86 anos sem títulos na Liga americana de basebol através desse método.

John W. Henry, então proprietário da equipa, tornou-se entretanto acionista maioritário do Liverpool, em 2010. E contratou o seu Billy Beane para diretor desportivo dos reds: Damien Comelli. Antigo treinador e olheiro, o francês que já tinha passado por Mónaco, Arsenal, Tottenham e Saint-Étienne chegou a Anfield Road apostado em adaptar o conceito ao universo futebolístico. Luís Suárez e Andy Carroll foram as duas primeiras contratações neste modelo, com o sucesso que se reconhece ao primeiro; no entanto, a temporada de 2011/12 não correu tão bem porque nomes como Charlie Adam, Downing, José Enrique ou Coates não resultaram e acabou por sair no final do ano.

Agora, mais do que Moneyball, esta era de Jürgen Klopp, ainda em busca de uma equipa que lhe permita desafiar os principais concorrentes ao título da Premier League (e os 85 milhões de euros gastos no central Van Dijk em janeiro explicam um pouco do caminho que será feito até chegar a esse patamar), é marcada pela forma como consegue encaixar no jogo virtudes-defeitos com os seus adversários. Graças a uma longa preparação do jogo na análise de vídeo, claro. Talvez o principal segredo para ser a equipa com mais golos apontados fora na Champions, com uma impressionante média de quatro golos por encontro na presente temporada…

Ficha de jogo

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FC Porto-Liverpool, 0-5

1.ª mão dos oitavos de final da Liga dos Campeões

Estádio do Dragão, no Porto

Árbitro: Daniele Orsato (Itália)

FC Porto: José Sá; Ricardo Pereira, Reyes, Marcano, Alex Telles; Herrera, Sérgio Oliveira; Otávio (Corona, 46′), Brahimi (Waris, 62′), Marega e Soares (Gonçalo Paciência, 74′)

Suplentes não utilizados: Casillas, Maxi Pereira, Osorio e Óliver Torres

Treinador: Sérgio Conceição

Liverpool: Karius; Alexander-Arnold (Joe Gomez, 79′), Van Dijk, Lovren, Andy Robertson; Jordan Henderson (Matip, 75′), Milner, Wijnaldum; Salah, Sadio Mané e Firmino (Danny Ings, 80′)

Suplentes não utilizados: Mignolet, Moreno, Lallana e Oxlade-Chamberlain

Treinador: Jurgen Klopp

Golos: Mané (25′, 53′ e 85′), Salah (29′) e Firmino (69′)

Ação disciplinar: nada a registar

Ainda assim, o início do jogo não fazia em nada antever o descalabro dos comandados de Sérgio Conceição que, mesmo sem a posse do costume (rondou os 30%), sabia melhor o que fazer à bola. E, à passagem dos dez minutos, foi por pouco que não marcou: Marega conseguiu deixar na área para Otávio que, após puxar para dentro, rematou forte para desvio de Lovren que saiu a rasar a trave da baliza dos ingleses. Depois, fechou a loja. E houve uma estranha ansiedade negativa tipo bola de neve a contribuir para o início da goleada do Liverpool.

Quase a meio da primeira parte, e no seguimento de um pontapé para a frente mal executado por José Sá, a bola foi parar aos pés de Salah que, descaído no direita, cruzou rasteiro para um corte providencial de Reyes para canto; logo a seguir, nova jogada dos reds agora pela esquerda a ser intercetada por Marcano quando Firmino se preparava para rematar em posição privilegiada. Cheirava a golo que apareceu mesmo, com Wijnaldum a aproveitar mais uma segunda bola ganha perto da área portista para rematar a bola contra a muralha defensiva azul e branca e Mané, sozinho, a atirar para um frango de José Sá, mal batido na forma como abordou um remate fácil (25′).

Primeiro remate enquadrado, primeiro golo. Mas, sobretudo, um golpe de tal forma doloroso que nunca mais o FC Porto conseguiu recuperar. Por isso, e de forma quase natural, o conjunto de Liverpool aumentou a vantagem quatro minutos depois: segunda bola ganha por Milner (com protestos no início do lance, por uma possível falta sobre Marega), progressão com bola sem oposição, remate fortíssimo ao poste e recarga de Salah (29′).

Até ao intervalo, o FC Porto teria ainda a sua única oportunidade realmente perigosa do encontro, com Soares a receber após uma boa combinação entre Otávio e Brahimi e a rematar na área a rasar o poste de Karius (44′).

Só por uma vez os dragões tinham conseguido virar uma desvantagem de 2-0 ao intervalo, no 3-2 com o Anderlecht em 1982/83; ao invés, acabou por sofrer a pior goleada de sempre em casa.  O que Sérgio Conceição queria ter mudado? Colocar Corona no lugar de Otávio, dar outra profundidade aos corredores laterais e subir as linhas de pressão para dificultar a saída de bola do Liverpool na primeira fase de construção. O que acabou por acontecer? Não só os ingleses conseguiram ser mais fortes, mais agressivos e melhores taticamente como conseguiram ter espaço para fazer brilhar as principais individualidades. E assim nasceu o terceiro golo: Salah (leva 30 golos na presente temporada) conduziu a bola, Firmino (21 golos esta época) rematou para uma primeira defesa de José Sá, recarga de Mané (12 golos em 2017/18) isolado ao segundo poste para o 3-0 aos 53′ que “matou” o jogo.

Sérgio Oliveira, quase num gesto de raiva, acabou por tentar um remate que mais não foi do que um passe para a parte mais alta dos Super Dragões, principal claque dos azuis e brancos que, mesmo entre o descalabro, nunca virou a cara ao apoio da equipa. Mas, em muitas outras partes do estádio, houve milhares de adeptos que acabaram por sair mais cedo: numa partida que parecia não ter fim para o conjunto de Sérgio Conceição, Firmino fez o 4-0 aos 69′ e Mané completou o hat-trick aos 85′ (uma noite especial, tanto que no final foi pedir a bola do jogo).

As diferenças entre Premier League e Primeira Liga são enormes, tão enormes que nem conseguimos medir. As diferenças entre Liverpool e FC Porto são grandes, mas nada que se compare. No final da primeira mão dos oitavos de final da Liga dos Campeões, o resultado exprime mais esses mundos à parte entre ligas nacionais do que propriamente entre as duas equipas. E é o segundo jogo, em Anfield, que poderá demonstrar isso mesmo. Como dizia Sérgio Conceição no final, há uma camisola e um símbolo para honrar.