Houve aplausos. Muito mais para um do que para outro. No dia do adeus de Pedro Passos Coelho, analisamos os momentos da estreia de Fernando Negrão, à luz da letra de Paulo de Carvalho — por sinal um amigo do ex-primeiro-ministro do PSD. O que nos diz “E Depois do Adeus”, sobre o que aconteceu esta tarde no Parlamento?

Momento “Eu te sofro, em mim”

Os olhares estavam postos na recém-remodelada bancada do PSD. Era dia de saída de Passos Coelho e dia de estreia de Fernando Negrão no confronto quinzenal com o primeiro-ministro, e a disposição dos deputados tinha levado uma volta de 180 graus: nomes como Hugo Soares, Luís Montenegro, Pedro Pinto e o próprio Passos Coelho tinham sido passado para as últimas filas, enquanto os membros da nova direção da bancada e o secretário-geral do PSD Feliciano Barreiras Duarte ocupavam os lugares da frente. Saem uns, entram outros, o PSD muda de caras e de tom: a crispação dá lugar ao diálogo, e as pazes entre PS e PSD são consumadas num abraço final, quando António Costa se levanta da bancada do Governo para ir cumprimentar o líder parlamentar do PSD. À volta, muitos dos deputados do PSD não gostaram do que viram.

Sinal de descrispação no novo ciclo: António Costa levantou-se no fim do debate quinzenal para ir cumprimentar Fernando Negrão (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

“Foi mais uma sessão de cumprimentos” do que outra coisa, comentava com o Observador um deputado do PSD. Fernando Negrão tinha avisado, na véspera de ser eleito líder parlamentar, que ia fazer dos debates com o primeiro-ministro mais uma “sessão de trabalho” do que uma “guerra”. “Foi mesmo uma sessão de trabalho, um conjunto de considerandos, sem ser incisivo”, diz outro deputado muito crítico da estratégia seguida pela nova liderança do PSD. “O PSD pura e simplesmente não foi a jogo: em 9 minutos de debate, só aos 5 minutos é que se ouviu a primeira pergunta ao Governo, e mesmo assim não foi uma pergunta direta”, comenta com o Observador, sob anonimato.

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A verdade é que Fernando Negrão preferiu explicar a António Costa ao que ia — vai ser oposição, mas construtiva e dialogante — e questioná-lo sobre um único tema: o da participação da Santa Casa no capital do Montepio. “Acredito que tenha levado outros temas preparados mas não soube gerir bem o tempo”, comentava outro deputado, que também não gostou de ouvir o líder parlamentar do PSD a elogiar a “experiência política” de António Costa: “Erro de principiante”. “Não foi brilhante, foi muito institucional, mas foi melhor do que se estava à espera”, contemporizou outro parlamentar social-democrata ao Observador, mais próximo da nova direção, sugerindo que Negrão “escolheu o tema onde se sente melhor e onde tem mais credibilidade: a banca”, por causa da sua prestação unânime enquanto presidente da comissão de inquérito ao BES.

Em troca, Costa não lhe levantou a voz uma única vez — apesar de não ter resistido a uma farpa disfarçada de sorrisos –, guardando toda a crispação para a presidente do CDS, Assunção Cristas. “Assunção Cristas fez o que o PSD devia ter feito”, afirma um deputado, criticando a escolha “extemporânea” do tema escolhido por Negrão para questionar Costa, e elogiando os temas abordados pela presidente do CDS, sobretudo “num dia em que o próprio ministro da Saúde admitiu que havia hospitais em falência técnica”. “É preciso marcar a agenda, e não foi isso que fizemos”, diz.

Quem sofreu? Alguns deputados do PSD que não gostaram nem do desempenho do novo líder de bancada, nem do tom, nem das pequenas falhas, muito menos da forma cordial como António Costa respondeu.

Momento “Quis saber quem sou”

Foi o nome escolhido por Rui Rio para liderar a bancada do PSD e, em clima de guerra interna no partido e na bancada, Fernando Negrão quis clarificar logo quem é: sou oposição. “Esta bancada é uma bancada da oposição, e irá exercer essa oposição de forma responsável e construtiva”, começou logo por dizer, para desfazer as dúvidas sobre qual o papel do PSD no xadrez político atual, numa altura em que, fora do Parlamento, Rui Rio e António Costa se sentam à mesma mesa para negociar dossiês.

Debate quinzenal 28 de fevereiro, Pedro Passos Coelho, António Costa, primeiro-ministro, Hugo Soares, Fernando Negrão,

Fernando Negrão mudou o tom da oposição do PSD. Menos crispado, menos agressivo, mais institucional (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

Amigos, amigos, mas só nas questões de “regime” e “interesse nacional”. De resto, “temos e teremos sempre esta atitude de firmeza relativamente à governação, porque não abdicamos de representar os portugueses que não se revêem neste Governo”, disse Negrão ao primeiro-ministro, numa tentativa de definir muito bem o que cada um é. Ou então era um ensaio para mostrar aos deputados do PSD que o partido não vai deixar de ser oposição. Para muitos, não foi assertivo o suficiente, com vários deputados a comentarem no final que, em 9 minutos de palco mediático de 15 em 15 dias, o líder parlamentar da oposição tem de aproveitar para “assumir de forma mais vincada que  é alternativa”.

Fernando Negrão procurou fazê-lo puxando por um tema onde se sente confortável: os problemas da banca e do sistema financeiro. Foi presidente da bem sucedida comissão de inquérito ao BES e “escolheu um tema que diz muito aos portugueses”. “Estamos a falar de dinheiro de pobres que vai para bancos”, argumentou o líder de bancada social-democrata, criticando o silêncio da esquerda sobre o negócio da entrada da Santa Casa no capital do Montepio. Questionou Costa sobre os contornos do negócios e disse que era contra.

“Somos contra e eu diria que somos em qualquer circunstância. Rui Rio já disse que era contra esta operação de grande risco”, afirmou Fernando Negrão, arriscando até um soundbite ao dizer que uma coisa é a Santa Casa estar no negócio dos “jogos de fortuna e azar”, que há “nos casinos”, outra totalmente diferente é estar no negócio da banca, que “não deve ser assumido por entidades do Estado mas por entidades privadas”.

Afinal quem é? Mostrou que era um institucional, ao desdobrar-se em cumprimentos iniciais, mas quis vincar que também sabe confrontar o Governo.

Momento “O que faço aqui”

Negrão quis mostrar que era oposição, mas o que acabou por fazer no hemiciclo na Assembleia da República foi outra coisa, ao dedicar uma parte do tempo a apaziguar relações com o PS. Quase pediu permissão para atacar quando explicou que, apesar da postura de diálogo, o PSD tinha de fiscalizar o Governo. No final, nem esgotou o tempo todo que tinha, cortando a si próprio a palavra antes que Ferro Rodrigues lhe fizesse o aviso habitual: “Senhor deputado, acabou o tempo, tem de terminar a intervenção”. Na bancada do PSD, há quem desvalorize a gafe, remetendo-a para a inexperiência enquanto tribuno. “Foi presidente de comissão durante muitos anos e, por norma, os presidentes de comissão não intervêm no plenário“, disse um deputado ao Observador.

Pedro Passos Coelho sentou-se na quinta fila da bancada no seu último dia como deputado, em que foi aplaudido de pé pela direita e por alguns deputados do PS sentados (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

Certo é que, numa intervenção de nove minutos, dedicou grande parte do tempo a descrispar o tom que reinava no PSD em relação a António Costa. Para muitos, a “sessão de cumprimentos” inicial ofuscou o resto, que não teve garra suficiente para compensar. “Esta é uma bancada da oposição, irá exercer essa oposição de forma responsável e construtiva, mas tenho a certeza que será possível nós dialogarmos e chegarmos a acordo, se as questões de interesse e regime exigirem diálogo e acordo. Para isso conte com toda a disponibilidade desta bancada”, disse Fernando Negrão a António Costa. (Já se tinha percebido a ideia, não era preciso sublinhar, pensariam deputados nas filas de trás).

Mais: até deixou escapar um elogiou ao primeiro-ministro. Negrão lembrava que os dois se estavam a reencontrar num frente a frente, depois de um ter sido vereador da oposição na câmara de Lisboa quando o outro era presidente da câmara, e foi aí que deixou escapar o elogio: “Tem mais experiência política do que eu”. Nova gafe, que caiu mal a outros deputados, que apontaram isso mesmo ao Observador. Então não era para fazer oposição?

Costa respondeu ao elogio na mesma moeda: disse que era “um gosto” reencontrar Fernando Negrão e saudou o facto de os debates quinzenais poderem, finalmente, “retomar a normalidade”. “Saúdo a forma como [Fernando Negrão] vê estes debates, não como um duelo quinzenal, mas com sentido de diálogo entre dois órgãos de soberania”, disse. Amigos, amigos.

O que faz ali? Uma oposição institucional com respeito por um homem com mais experiência política. A atitude foi vista por deputados da sua bancada como excessivamente frouxa e sem combatividade.

Momento “Quem me abandonou”

Literalmente, os deputados da bancada do PSD foram saindo da sala depois de terem assistido ao desempenho do seu líder parlamentar. Minutos depois de terem ouvido Fernando Negrão, a que aplaudiram — mas só no final e não nos momentos altos, no meio, como é habitual –, a bancada do PSD, que é a maior, com 89 deputados, foi ficando reduzida a cerca de metade dos deputados. Saiam e entravam. Pedro Passos Coelho foi um dos que saiu pouco depois, mas regressou.

Depois de Fernando Negrão falar, houve momentos em que pelo menos metade da bancada do PSD não esteve presente a ouvir o quinzenal (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

A questão é que, desde a primeira hora, o antigo juiz é um líder parlamentar abandonado por mais de metade da bancada. Só 39,7% dos deputados votaram a favor da sua eleições: 35 num total de 89, e essas feridas ainda não estão saradas. Negrão prometeu “lealdade institucional” do PSD ao Governo e ao PS nas “questões de interesse nacional”, mas ainda lhe falta tratar da “lealdade” dentro da sua própria bancada. Na altura da eleição, identificou um “problema de ética” nos deputados que não votaram a seu favor; esta quinta-feira terá a primeira reunião com o grupo parlamentar, à porta fechada, para serenar os ânimos.

Paula Teixeira da Cruz, que foi uma das vozes mais críticas da tomada de posse de Negrão enquanto líder parlamentar, dizendo que “não tinha legitimidade”, foi das únicas que falou à frente das câmaras de televisão no final do debate. E falou com uma bandeira branca erguida: “Temos que estar atentos, preocupados com o que se passa no país. Todos, no PSD, somos poucos para fazer uma oposição real”. 

Foi mesmo abandonado? Sim, tendo em conta o apaludómetro e as deserções a meio do debate. Se os deputados do PSD esperavam que Negrão tivesse “vencido” o debate quinzenal frente a António Costa para lhe dar tréguas, quer dizer que a guerra deverá continuar…

Momento “De quem me esqueci”

De Hugo Soares, o líder parlamentar deposto. O debate quinzenal foi profícuo em cumprimentos e saudações, mas apenas a Passos Coelho, que estava de saída, e a Fernando Negrão, que estava de chegada. (Quase) ninguém, nem o próprio Fernando Negrão, fez referência ao ex-líder parlamentar.

O tom de António Costa para o PSD foi o mais cordial de toda a legislatura (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

O único que o fez foi, na verdade, António Costa, e foi com ironia: “Foi um gosto tê-lo como interlocutor ao longo destas poucas semana que convivemos em funções”. Os elogios de Negrão foram apenas para Passos Coelho, que cumpria hoje o seu último dia como deputado: “A história saberá fazer-lhe justiça”, disse, desencadeando o único momento de aplauso da sua bancada durante a sua intervenção. As palmas só voltariam no fim da intervenção.

Esqueceu-se mesmo? Não se sabe se foi esquecimento ou se foi intencional. Mas Rui Rio já se tinha “esquecido” de convocar Hugo Soares para o palco do congresso e para a Comissão Política Nacional, onde tem assento pelos estatutos. Negrão também se esqueceu — ou não se lembrou — que podia ter usado algum tempo extra para lançar mais uma pergunta pelo menos a António Costa.

Momento “Perguntei por mim”

Ferro Rodrigues dava o debate por terminado quando António Costa levantou o olhar e procurou Fernando Negrão. Levantou-se da bancada do Governo e foi, sozinho, até à fila da frente da bancada dar pessoalmente as boas vindas ao interlocutor. O que disseram, não se sabe, mas o aperto de mão foi prolongado e os sorrisos ficaram registados na fotografia.  Não fez o mesmo com Assunção Cristas, com quem tinha tido o momento mais crispado do debate.

Assunção Cristas acabaria por protagonizar os momentos mais quentes do debate, sobre Saúde e a prevenção dos incêndios (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR),

Depois do abraço a Negrão, no entanto, Costa saiu a correr para os braços dos parceiros da esquerda, com quem se demorou a trocar dois dedos de conversa: primeiro com os deputados do Bloco de Esquerda, depois com os do PCP. “A democracia não se enriquece com a exclusão, só com a integração”, tinha dito Costa momentos antes, ainda fora do Parlamento, e esse parece que vai mesmo ser o seu lema.

Perguntou mesmo por si? Não sabemos se Costa perguntou por si a Negrão, do género: “Então como é que correu?” Nem se Negrão lhe perguntou: “Então, foi difícil?” Mas em política há gestos simbólicos importantes. Este degelo foi um deles.

Momento “Quis saber de nós”

No meio de tanto diálogo, António Costa só quis saber dos velhos adversários do PSD quando já estava a responder a uma pergunta de Catarina Martins: foi aí que aproveitou para mandar uma bicada a Fernando Negrão. Mas suave, disfarçada de risos, uma graça.

No final, a confraternização de Costa com a “geringonça” (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

Já sem o PSD poder responder, António Costa fez a única verdadeira provocação do debate a Fernando Negrão. O primeiro-ministro falava para o BE, mas pediu licença para se dirigir rapidamente para a bancada social-democrata com ironia. “Fico perplexo que, dois anos depois” — de o Governo ter resolvido os problemas deixados pelo PSD/CDS na banca –, “o novo líder do PSD venha falar do investimento no setor bancário como um investimento tóxico por natureza. Espero que tenha sido um deslize de estreia, ao ver o sistema financeiro como um novo tóxico”, disse. Mas Fernando Negrão, que tinha usado essa expressão para criticar a entrada da Santa Casa num negócio tóxico como a banca, não tinha tempo para responder. Deslize de principiante?

Quis mesmo saber? Nem assim Negrão quis saber daquela pontinha de veneno que atingia a nova relação. Numa situação habitual, o PSD poderia teria pedido a palavra para defender a honra. Mas o momento era de outra natureza, de não confrontação e não valia a pena estar a criar atritos.