Vencedor de quatro Óscares, o inglês Nick Park é o brilhante autor da série de anúncios “Creature Comforts”, dos filmes de animação de volumes da dupla Wallace e Gromit e o realizador, com Peter Lord, de “A Fuga das Galinhas”, todos eles no seio dos estúdios britânicos Aardman, dedicados à animação tradicional fotograma a fotograma (“stop motion”) e de onde saem séries como “A Ovelha Choné” e a respectiva longa-metragem.

O realizador de “Wallace & Gromit: A Maldição do Coelhomem” veio a Lisboa, à Monstra, antestrear “A Idade da Pedra” (já em exibição). É a sua primeira animação de longa-metragem a solo, onde uma tribo de trogloditas tem que ganhar uma partida de futebol ao “dream team” da Idade do Bronze, para recuperar o edénico vale onde vive e evitar ser escravizada pelos seus vizinhos mais evoluídos. O Observador falou com um tímido mas muito bem-disposto Nick Park sobre esta fita hilariante, em que os dinossauros à moda de Ray Harryhausen convivem com patos gigantes e um javali guarda-redes e se joga à bola num estádio digno de uma superprodução histórica. Tudo paciente e meticulosamente animado à mão, com uma ajudinha dos efeitos digitais aqui e ali.

[Veja o “trailer” de “A Idade da Pedra”]

“A Idade da Pedra” é o filme animado sobre homens das cavernas que queria fazer já há bastantes anos?
Sim, é. Eu sempre achei que a comédia e os homens primitivos se prestam muito a este tipo de animação. O aspecto físico, as cabeças, as fisionomias, tudo neles se presta a isso. E não queria realizar apenas mais um filme de homens das cavernas convencional, já há muitos desses. Estava à procura de uma ideia diferente e foi aí que entrou o futebol. A ideia era fazer um filme no espírito da Aardman, mais excêntrico e amalucado.

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Eu definiria “A Idade da Pedra” como um misto de “Quando o Mundo Nasceu”, “Gladiador” e da Liga dos Campeões.
Este filme é um “Braveheart: O Desafio do Guerreiro” com bola [risos]. Porque é a história sobre este tipo muito determinado que quer que lhe devolvam o vale em que vive. E eu nunca tinha visto um filme de desporto pré-histórico, não havia nenhum. Por isso fiquei muito entusiasmado com a ideia, e com a comédia que se pode extrair de um grupo de homens da cavernas muito desastrados, que têm que jogar um jogo com o qual não estão familiarizados e adquirir espírito de equipa, além de não poderem usar as mãos nem as armas. Nem sou fã de futebol, só gosto de ver os grandes jogos e pouco mais, mas o lado tribal da história atraiu-me. E o filme tem uma mensagem: mesmo nos seus primórdios, o futebol foi logo corrompido pelo dinheiro, pelo bronze. Mas também está lá o amor pelo “jogo bonito”.

É a primeira longa-metragem que realiza sozinho. Porquê esta?
As longas-metragens animadas com estas características são muito grandes, por isso costumam ser precisas duas pessoas para lidar com tudo. Só animadores são 40. E como decidi fazer “A Idade da Pedra” sozinho, tivemos que mudar a estrutura de trabalho. Tive que ter capitães, dois directores de animação que passassem as informações aos animadores, aos autores dos modelos, aos cenógrafos, etc. Todos os dias filmávamos umas 35 ou 40 sequências diferentes, é desgastante. E eu participo em todo o processo de criação, trabalho com os argumentistas e gosto de conceber as personagens.

[Veja imagens da rodagem do filme]

O humor do filme tem a marca inconfundível da Aardman. Há comédia absurda, burlesco clássico e muitos trocadilhos. É uma cornucópia de “gags”. Aproveitam tudo o que é escrito?
Como demora muito a fazer um filme destes, de animação de volumes, temos muito tempo para pensar a comédia e há sempre muitas piadas e “gags” que acabam por ficar de fora. Toda a gente na equipa contribui com ideias cómicas. Estão sempre a apresentar-me piadas e depois eu escolho-as.

Aardman também é sinónimo de animais cómicos e em A Idade da Pedra há três animais fabulosos: o javali, o coelhinho e o pato gigante.
O coelhinho é um sucesso com as crianças. Parece que gosta de ser caçado e comido. Os animais são um veículo excelente para a comédia, nós gostamos mais de animais do que de pessoas, não sei porquê. O filme ia ter mais criaturas, como dinossauros, e até ovelhas pré-históricos.

As antepassadas da Ovelha Choné?
Sim, exactamente [risos]. Os homens das cavernas dão com um belo rebanho de ovelhas e pensam caçá-las, mas depois descobrem que as ovelhas têm dentes muito afiados e fogem a sete pés delas. Só que tivemos que eliminar essa sequência porque era igual à do pato gigante. Cá está o exemplo de uma piada que teve que ficar de fora.

[Veja uma sequência do filme]

O filme tem alguns efeitos digitais, mas no essencial, continua a ser uma animação de volumes clássica, fotograma a fotograma, como é apanágio da Aardman. Onde e como é que recorreram aos computadores?
A essência do filme é animação de volumes, fotograma a fotograma. Usámos os efeitos digitais para fazer a lava e coisas dessas. Mas nas erupções vulcânicas, por exemplo, recorremos a efeitos de pirotecnia combinados com efeitos de computador. Queríamos que a fita tivesse o aspecto de um daqueles filmes clássicos do Ray Harryhausen, em especial no prólogo, onde os dinossauros a combater lhe fazem uma homenagem. No caso do jogo de futebol, fazer milhares de bonecos era pouco prático e muito caro. Por isso filmámos planos aproximados das pessoas no estádio em animação fotograma a fotograma, passámos esse material ao pessoal dos efeitos computacionais e eles reproduziram-nas, para que pudéssemos ter aquela enorme assistência. Foi como no “Gladiador”, do Ridley Scott, queríamos ter um ambiente de grande entusiasmo e sabor épico. Mas o que manda em “A Idade de Pedra” continua a ser a animação tradicional.

Toda a gente na cidade da Idade do Bronze fala com sotaque francês cómico. É por serem mais sofisticados?
Eles têm sotaques franceses, alemães e por vezes falam inglês normal. É por ser um mundo mais cosmopolita. E o lorde Nooth, interpretado pelo Tom Hiddleston, também tem esse sotaque francês pateta. O Tom é um excelente imitador e sabe fazer muitas vozes. Gosto muito de escolher os actores que fazem as vozes. Quando estou a escrever um argumento já sei como é que as personagens vão ser e faço desenhos delas, que os modelistas transformam depois nos bonecos, e mostramo-los aos actores quando eles chegam. E depois de gravarmos, por vezes alteramos os bonecos em função das prestações vocais. Precisamos de ter as vozes antes para que os animadores possam fazer o seu trabalho com rigor.

Dê-me um exemplo concreto disso neste filme.
Olhe, por exemplo, aquele trejeito que o Dug, que fala com a voz do Eddie Redmayne, faz com a boca, é do próprio actor, o Eddie fê-lo durante as gravações e nós acrescentámo-lo à personagem. É um trabalho bastante duro para os actores, não é só como ir falar à rádio, ao contrário do que muitas pessoas pensam. Adoro trabalhar com os actores e o elenco do filme é óptimo. Na sequência em que o Hognob, o javali, está a dar uma massagem ao lorde Nooth, sou eu que estou na cabina de gravação a bater com as mãos e os cotovelos nos ombros do Tom Hiddleston para lhe fazer a voz tremer. Ele não conseguia parar de rir! As coisas que uma pessoa tem que fazer pela sua arte! (risos).

[Veja a gravação das vozes]

A propósito de vozes e da sua importância nestes filmes, Peter Sallis, que fazia a voz de Wallace nos filmes de Wallace e Gromit, morreu no ano passado. Isso quer dizer que não fará mais filmes desta série?
Sem dúvida que é muito difícil substituir o Peter, que era um grande actor e uma pessoa formidável, e a sua pergunta faz todo o sentido. A voz dele era muito especial. Ele era o Wallace. Eu adorava voltar a trabalhar com o Wallace e o Gromit e tenho ideias para eles, mas essa pergunta é muito importante: como fazer para a voz do Wallace?

Já tem planos para o próximo filme?
Por agora estou a descansar, mas já tenho mais ideias, claro. Só que a equipa está a começar a filmar a segunda longa-metragem da Ovelha Choné e por agora estão todos com muito que fazer.