Vários enfermeiros contratados através de empresas de trabalho temporário para exercer funções nos estabelecimentos prisionais queixam-se de ter pagamentos em atraso e de não ter as condições necessárias para fazerem o seu trabalho de maneira eficaz. Algumas destas queixas foram esta semana encaminhadas pela Ordem dos Enfermeiros para procuradora-geral da República, para a ministra da Justiça e para o diretor-geral dos Serviços Prisionais, segundo um documento a que o Observador teve acesso.

A origem do problema não é nova: há falta de profissionais de saúde nas prisões e, para colmatar essa falha, o Estado tem recorrido aos serviços destas empresas de trabalho temporário, que recrutam enfermeiros para cumprir horários quando é necessário suprir alguma necessidade num estabelecimento prisional.

Em várias queixas lidas pelo Observador, o problema repete-se: as empresas de trabalho temporário deixam meses de trabalho por pagar e há até quem fale em esquemas organizados de “burla”. Numa das denúncias, um enfermeiro queixa-se de que nem ele nem os colegas receberam o pagamento referente ao mês de dezembro e que a empresa continua a não dar resposta.

Noutra queixa, um conjunto de enfermeiros que prestam serviços no estabelecimento prisional das Caldas da Rainha detalham o mesmo problema: a empresa em causa — a Sojo Saúde — devia ter pago o referente à prestação de serviços no mês de dezembro em janeiro, mas continua a adiar o pagamento. Os enfermeiros descrevem a situação como um “escândalo” e dizem ainda conhecer colegas em circunstâncias semelhantes noutros estabelecimentos prisionais.

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Outra denúncia fala da falta de condições no estabelecimento prisional de Paços de Ferreira. Na queixa, um enfermeiro explica que se encontrava a fazer um turno de enfermagem naquela prisão sozinho, uma vez que a colega que o devia acompanhar era contratada através de uma empresa de trabalho temporário. Tendo o pagamento atrasado, a profissional não compareceu ao trabalho. O autor da denúncia explicava que não consegue fazer o trabalho de duas pessoas e que não assumiria as responsabilidades por qualquer falha nos cuidados de saúde provocada pela falta de pessoal.

O Observador tentou contactar a empresa Sojo Saúde através do número de telefone disponibilizado na página de Internet, mas sem sucesso. Também nas denúncias aparece uma referência a este facto: a empresa não tem atendido o telefone aos enfermeiros queixosos.

O Observador sabe também que o número de queixas relativas ao trabalho nas prisões tem vindo a aumentar, sendo as queixas sobretudo relacionadas com o comportamento das empresas de trabalho temporário que o Estado contrata para suprir estas necessidades.

Empresas pagam menos de 5 euros à hora

Numa denúncia enviada ao Observador, um enfermeiro especialista que já prestou serviço em vários estabelecimentos prisionais considerou que o recurso a “outsourcing para necessidades permanentes” é um “flagelo”.

O enfermeiro remeteu uma proposta de trabalho que recebeu por parte de uma empresa de trabalho temporário — a CV Healthcare Solutions — denunciando que as empresas pagam menos de 5 euros à hora aos enfermeiros, o que “desmotiva” e “desqualifica o serviço”, contribuindo para a “situação dramática existente nos estabelecimentos prisionais ao nível dos cuidados de saúde”.

A proposta recebida por este enfermeiro destina-se a “suprir turnos em aberto e reforçar equipas” e inclui cinco estabelecimentos prisionais: Alcoentre, Lisboa, Tires, Vale de Judeus e Setúbal.

Para Lisboa, a proposta de trabalho a tempo inteiro é de 45 horas semanais, por um valor de 990 euros mensais (o que dá um valor de 5 euros por hora). Já para Tires e para Vale de Judeus, a proposta é para 40 horas semanais por um valor de 840 euros mensais, o que significa menos de cinco euros por hora. Todas as propostas são no regime de prestação de serviços a recibos verdes.

Maioria dos enfermeiros nas prisões são subcontratados

Em resposta às perguntas do Observador, o Ministério da Justiça, que tutela as prisões, confirmou que “a maioria dos profissionais de saúde que hoje exerce funções nos Estabelecimentos Prisionais e nos Centros Educativos são subcontratados por empresas de trabalho temporário“.

“Até 2009, a prestação de cuidados de saúde à população reclusa era assegurada pelos profissionais pertencentes ao quadro de pessoal da então DGSP e complementarmente por pessoal contratado em regime de avença”, explicou fonte oficial do ministério, sublinhando que “nos últimos anos com a progressiva aposentação do pessoal do quadro, a exceção passou a regra“.

Reconhecendo que “o atual número de profissionais de saúde do quadro de pessoal da DGRSP é manifestamente insuficiente para fazer face aos cuidados de saúde que são necessários prestar diariamente nos 47 Estabelecimentos Prisionais”, o ministério da Justiça explicou ainda que decorrem neste momento concursos para a contratação de 24 enfermeiros e 12 médicos. Os concursos foram iniciados em 2017 com autorização do Ministério das Finanças.

Governo quer abrir mais concursos

O Ministério da Justiça diz ainda ao Observador que, dada a necessidade de mais pessoal nas prisões, “tenciona abrir novos concursos de recrutamento em 2018, logo que seja concedida autorização por parte do Ministério das Finanças”.

Em fevereiro de 2017, o Governo criou um grupo de trabalho interministerial, composto por elementos da Justiça e da Saúde, que tem trabalhado no sentido de melhorar as condições de acesso aos cuidados de saúde nas cadeiras.

DGRSP remete questões laborais para empresas

A Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais justificou nas respostas ao Observador que “face à necessidade de recrutamento de técnicos de saúde que garantam a prestação de cuidados de saúde em todos os estabelecimentos prisionais, contrata horas de trabalho por valência clínica, pelo que, e de acordo com as normas estipuladas na contratação pública, fica sujeita à apresentação das propostas das empresas concorrentes, sendo os critérios de adjudicação os definidos pelo regime da contratação pública”.

A DGRSP escusou-se a comentar as condições laborais praticadas por estas empresas, dizendo apenas que “a articulação técnica e monitorização do desenvolvimento da prestação de serviços técnicos prestados pela empresa ganhadora não passa pelo relacionamento laboral empresa/trabalhador” — ou seja, os Serviços Prisionais, que contratam as empresas para que recrutem enfermeiros, monitorizam o serviço prestado mas não as condições laborais dos profissionais.

Na resposta ao Observador, fonte oficial da DGRSP disse ainda que está “a mudar de paradigma, estando a procurar-se que haja cada vez maior prestação de cuidados de saúde por trabalhadores dos quadros desta Direção Geral, o que não pode fazer-se de um momento para o outro”.

Prisões continuam com falta de médicos e enfermeiros

Em julho do ano passado, o diretor-geral dos Serviços Prisionais, Celso Manata, dizia à Renascença que as prisões tinham menos de metade dos enfermeiros de que precisam. Em  Setúbal, afirmou Manata, era o caso mais grave. “A nível operatório temos unidades completamente fechadas. Os médicos que estão aqui, e os enfermeiros, têm sido heróis, porque praticamente têm feito omeletes sem ovos“, afirmou o responsável.

A falta de pessoal de enfermagem levava a que, frequentemente, fossem os guardas prisionais a administrar medicação aos reclusos.

Celso Manata tinha também criticado o recurso a empresas de trabalho temporário. “Do ponto de vista económico as empresas são uma má resposta, porque como o médico não conhece a pessoa, porque está sempre a rodar, pede os exames todos e prescreve toda a medicação que lhe é pedida.”

O diretor-geral tinha sublinhado a necessidade de contratar pelo menos 50 médicos e 50 enfermeiros para os quadros dos serviços prisionais. Em agosto de 2017, o Ministério das Finanças autorizou a abertura de um concurso para a contratação de 12 médicos e de 24 enfermeiros.

Celso Manata veio depois dizer, ao Diário de Notícias, que os profissionais de saúde contratados através desses concursos só entrariam em funções “ao fim de um ou dois anos”, porque “o concurso vai demorar tempo”. “Como temos necessidades imediatas, no curto prazo, pedimos autorização para contratar médicos e enfermeiros em regime de avença e também através da mobilidade”, explicou.