Representantes de organizações não-governamentais (ONG) sediadas em favelas do Rio de Janeiro acreditam que o decreto presidencial que colocou o comando das forças de segurança do estado nas mãos do Exército não trará paz às comunidades pobres.

O diretor da ONG Redes da Maré, Edson Diniz, localizada no complexo da Maré – uma das zonas mais violentas da capital ‘carioca’ -, considerou que a intervenção federal não irá reverter a onda de violência que atinge o estado mais emblemático do Brasil.

“Usando o exemplo da Maré [comunidade que ficou sob o controlo do Exército entre abril e 2014 e junho de 2015] achamos que a nova intervenção, agora em todo o estado do Rio de Janeiro, não vai dar certo”, afirmou.

“O exército gastou quase 600 milhões de reais [149 milhões de euros] na Maré naquela ocupação. O que ficou de legado? Absolutamente nada. A Maré continua com índices altos de violência. Gastou-se muito e não sobrou nada como legado”, acrescentou.

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Raquel Willadino, diretora da ONG Observatório de Favelas, concorda que a intervenção liderada pelos militares será ineficiente.

“Tivemos experiências anteriores de ações das Forças Armadas nas ruas e comunidades e não houve nenhum resultado positivo. Isto aconteceu porque o Exército segue uma lógica de guerra que criminaliza os moradores da periferia e a juventude negra no Rio de Janeiro”, explicou.

Segundo a especialista, durante as operações das forças de segurança as favelas são tratadas como territórios inimigos e seus moradores como suspeitos em potencial.

Citando abusos cometidos no primeiro mês de intervenção no Rio de Janeiro, Raquel Willadino mencionou a recolha ilegal de informações imposta na Vila Kennedy, uma favela onde centenas de pessoas foram fotografadas por soldados e viram os seus documentos verificados ao saírem de suas casas.

“Estas pessoas foram tratadas como criminosas. Aconteceram revistas até em crianças”, criticou a responsável, dando este caso como “um exemplo de violação dos direitos dos moradores”.

Thainã de Medeiros, do coletivo Papo Reto, um grupo de ativistas que mora em outra área do Rio de Janeiro que já foi alvo de intervenção militar, o complexo do Alemão, também acredita que as forças de segurança federal não trarão a paz.

“Nós já vimos o Exército no complexo do Alemão nos anos de 2007 e 2010. Nessas ocasiões não houve paz nem segurança”, disse. “Em 2010 houve uma queda da violência letal, mas o custo disto foram moradores espancados, as suas casas invadidas e mulheres violadas dentro das favelas”, completou.

Uma ocupação em massa de soldados no Alemão foi transmitida ao vivo pelas redes de televisão do Brasil em novembro de 2010 numa operação que mobilizou 2.600 agentes de segurança, tanques e dezenas de carros blindados.

Na época, autoridades ligadas ao Governo estadual declararam que a área não seria mais controlada por grupos criminosos, uma previsão que não se concretizou.

Thainã de Medeiros explicou que o regresso da criminalidade ao complexo do Alemão ocorreu porque o governo decidiu investir mais na instalação de 16 unidades da Polícia Pacificadora (UPP), que em investimentos significativos para melhorar a vida da população ou afastar os jovens do crime organizado.

“Não construíram nenhuma escola. Fizeram um centro de saúde e uma biblioteca. Os dois funcionavam em estações de um teleférico que atualmente está desativado. A biblioteca e o centro de saúde deixaram fecharam por causa da crise económica e a falta de segurança”, contou.

“Nunca tivemos uma intervenção de professores, de médicos, de cultura ou das artes no complexo do Alemão. Estas são medidas, de longo prazo, que realmente poderiam ter resultados duradouros [contra a violência]”, concluiu o militante do coletivo Papo Reto.

Um mês após intervenção militar no Rio de Janeiro, cidade é palco diário de violência

Pouco mais de um mês depois de o Governo decretar uma intervenção federal na área de segurança pública do Rio de Janeiro, não há sinais de queda da onda de violência que atinge na cidade mais emblemático do Brasil.

Embora não haja informações oficiais sobre o desempenho dos índices de criminalidade no período, os noticiários permanecem focados em tiroteios, assaltos e assassinatos diários na capital ‘carioca’ e na sua região metropolitana.

O general Walter Braga Netto, nomeado chefe das policias e do Exército do Rio, organizou operações pontuais em algumas favelas, mas não anunciou um plano de segurança que possa reverter a sensação de medo que toma os moradores e as ruas.

Ignácio Cano, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), analisou o primeiro mês de intervenção e disse à Lusa que não verificou qualquer sinal de mudança.

“Não aconteceram grandes mudanças e nem houve um policiamento muito ostensivo no período. Temos que aguardar os dados oficiais para conhecer os índices de criminalidade”, mas parece que “nada de muito significativo aconteceu”, afirmou.

Já Francisco Fonseca, cientista social e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) considerou que a intervenção federal teve como objetivo principal melhorar a popularidade do Presidente Michel Temer e, por isto, não obteve nem alcançará os resultados esperados.

“O exército nas ruas é um espalhafato. Algo para fazer barulho, que não vai resolver nada”. A “intervenção tem objetivos políticos e o corpo militar sequer está preparado para atuar em conflitos urbanos”, explicou.

A violência que prejudica o dia a dia dos ‘cariocas’ tornou-se mais explícita na última quarta-feira, quando Marielle Franco, vereadora [membro da câmara municipal] e ativista de direitos humanos, e o seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados brutalmente.

A morte da vereadora, que militava num partido de esquerda e criticava publicamente a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro denunciando abusos das policias e soldados, despertou reações imediatas de indignação e choque.

Milhares de pessoas saíram às ruas para homenageá-la e para mostrar indignação contra os constantes ataques sofridos pela população negra das periferias brasileiras.

O Governo e órgãos de Justiça do país condenaram o ataque e comprometeram-se em punir os autores do crime. A ONU, a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch (HRW) também exigiram uma investigação rápida do caso.

Para Francisco Fonseca, há indícios de que o assassinato da Marielle Franco foi premeditado por setores da polícia militar (estadual) que foram criticados duramente pela ativista, procurando deixar duas mensagens à opinião pública.

“A primeira mensagem é para os moradores das comunidades pobres e para os defensores dos direitos humanos. Ela diz: ‘fiquem no seu lugar e não ousem se rebelar'”, disse o docente universitário.

Como a intervenção federal não foi discutida nem planeada com antecedência pelo Governo Federal, o investigador considera que esta execução procurou ser também uma demonstração de força de agentes da polícia militar perante o Exército.

“O segundo recado é que as policias do Rio de Janeiro são autónomas perante as Forças Armadas e [o assassinato de Marielle Franco] diz algo como ‘vocês não vão nos deter’. Me pareceu que há esta segunda mensagem também, embora, não tenhamos todos os elementos para comprová-la”, acrescentou.

Já Ignácio Cano, da UFRJ, remeteu para mais tarde um comentário sobre o simbolismo desta execução. “É preciso desvendar o caso e saber quem está por detrás dele”. No entanto, “independentemente de qualquer coisa, queremos que o caso seja resolvido. Quem cometeu este crime agiu com uma confiança de impunidade, com uma certeza de que nada iria acontecer, que atacou alguém de grande visibilidade social e política. Nós temos que mostrar [aos autores do crime] que eles estão errados”, concluiu.