Passou uma semana desde que a Comissão Técnica Independente, coordenada por João Guerreiro, apresentou na Assembleia da República o relatório sobre o fogo de outubro, que matou 49 pessoas. Mas, quer do lado da oposição quer do lado do Governo, pouco havia a acrescentar ao que foi dito desde a última quarta-feira, quando os deputados se sentarem frente-a-frente com os ministros da Administração Interna e da Agricultura.

Entre críticas à falta de atenção perante os avisos que chegaram do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) e o silêncio do Governo sobre as contradições entre a falta de apoio as pedidos de reforço, ficam as novidades do executivo.

Os ministros Eduardo Cabrita e Capoulas Santos aproveitaram o palco para anunciar a compra de carros de combate ao fogo, o reforço de equipas de bombeiros e muitos milhões em apoios aos agricultores afetados.

Fogos. “Ministro perdeu oportunidade de esclarecer quem diz a verdade”

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O silêncio do Governo sobre (a ausência de) meios aéreos

O debate já estava na reta final quando Telmo Correia pôs o dedo na ferida. “Os senhores não foram capazes, depois de Pedrógão Grande, de pôr trancas à porta” e garantir que os meios do combate a incêndios estavam à disposição da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC). Na bancada do Governo estavam o ministro da Administração Interna, o seu secretário de Estado da Proteção Civil e o ministro da Agricultura. Mas quem respondeu ao CDS foi o deputado Rocha Andrade, que contestou a “suposta ausência de reforços de meios” no dia 15 de outubro. Jorge Gomes foi secretário de Estado da Administração Interna durante os dois grandes incêndios de 2017 e estava na bancada socialista — mas ninguém lhe ouviu uma palavra.

As 5 contradições entre o ex-secretário de Estado Jorge Gomes e os peritos dos fogos

Em outubro, quase quatro meses depois de o fogo partir de Pedrógão Grande consumir centenas de hectares de floresta e matar quase 70 pessoas, ainda houve “erros que não podiam ter sido cometidos”, apontou Telmo Correia. Até esse momento, durante o debate marcado para discutir as conclusões do relatório da comissão técnica independente, já tinha havido algumas referências à página 148 do documento — aquela em que os 12 especialistas nomeados pela Assembleia da República enumeram sete pedidos de reforço de meios apresentados pela ANPC até às vésperas do incêndio de outubro e que teriam sido rejeitados pelo Governo. O mesmo relatório que João Guerreiro, coordenador do grupo, já admitiu vir a rever.

O deputado do CDS criticou aquilo que considera ter sido uma “falha incrível de previsão” daquilo que se aproximava e acusa o Ministério da Administração Interna “de não saber que, naquelas circunstâncias, era preciso ter todos os meios” disponíveis, no ar e no terreno.

O Governo, assinalou Telmo Correia, “perdeu oportunidade de dizer quem nos diz a verdade”.

Dois dias depois de o relatório da CTI ser divulgado, Jorge Gomes chamou os jornalistas para apontar o dedo aos dados “falsos” presentes no documento. E falou, precisamente, sobre os pedidos de reforço de meios que teria recusado, enquanto secretário de Estado da Administração Interna. “É falso”, disse várias vezes. Muito diferente de esta quarta-feira. O agora deputado seguiu o debate com atenção, mas depois de o CDS voltar ao tema manteve-se no seu lugar. Foi Fernando Rocha Andrade quem assumiu a defesa do Governo.

O socialista criticou a “ideia fixa” de quem atribui “integralmente e exclusivamente” as responsabilidades do incêndio ao Governo, numa “tática política” que esquece o “problema maior” do incêndio de outubro:

Essa tese apenas encontra problemas no combate ao incêndio e, em especial, numa suposta ausência de reforços de meios, que, aliás, não se verificou, como já foi cabalmente esclarecido”, disse Rocha Andrade.

O ministro Capoulas Santos foi o último a intervir, mas preferiu usar os seus oito minutos a ler a intervenção escrita que trazia consigo onde destacava o que o Governo já fez no rescaldo dos fogos.

Carros, equipas e milhões para os agricultores

Eduardo Cabrito começou a desbravar o caminho dos anúncios do Governo. Na intervenção com que abriu o debate, o ministro da Administração Interna revelou que já foi lançada, através de ajuste direto, a “adjudicação de 140 viaturas ligeiras e pesadas para as estruturas de combate inicial e ampliado”, a que se somam outras “100 viaturas para corporações de bombeiros e para a Força Especial de Bombeiros (FEB)”.

A maior parte desses carros de combate vai servir para equipar os Grupos de Intervenção e Proteção e Socorro (GIPS) e equipas do Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (SEPNA), ambos da GNR. Outras 80 viaturas vai ser entregues a diferentes corporações de bombeiros e a Força Especial de Bombeiros, com as restantes 20.

Duas horas e meia mais tarde, era a vez de Capoulas Santos. “Relativamente às áreas que tutelo no Governo, a Agricultura e Florestas, gostaria de sublinhar a forma pronta como foi possível reagir no apoio às pessoas afetadas, particularmente aos agricultores”, disse o ministro. Os números vinham listados na intervenção escrita que leu ao plenário. Seis dos 18 parágrafos do discurso foram exclusivamente dedicados à obra que foi concluída nos últimos meses ou que está prestes a fechar.

  • 92 milhões de euros em apoios aos agricultores: 62 milhões em “fundos exclusivamente nacionais” distribuídos a 23.746 produtores e 30 milhões para recuperação das vinhas ardidas;
  • 413 candidaturas aprovadas no âmbito do Regime de Apoio à Reconversão e Reestruturação das Vinhas
  • 2.732 toneladas de ração para animais, 106 toneladas de palha e fenos e 225 toneladas de açúcar
  • Concursos a decorrer para contratação de 500 sapadores e compra de carros de combate e equipamentos
  • Reequipamento de 40 equipas
  • Criação de 26 parques de receção e armazenamento de madeira queimada

“O Governo falhou” ou a oposição só olha para “a página 148”?

O Governo pode ter ido ao Parlamento garantir que estava a fazer, “mais do que nunca”, tudo o que estava ao seu alcance para que a tragédia não se repetisse, e que estava a tirar as devidas lições do que se passou em 2017. “Se não tirarmos lições do passado não conseguiremos preparar o futuro”, disse o ministro da Administração Interna, garantindo que tudo estava a ser feito “para que este ano seja diferente”. Mas enquanto Eduardo Cabrita e os deputados do PS reforçaram a ideia de que a dimensão da tragédia se deveu sobretudo às “condições meteorológicas extremas” e à “influência do furacão Ofélia”, com o deputado comunista Jorge Machado a concordar mesmo com a ideia de que a situação meteorológica “verdadeiramente excecional” não deve “ser subestimada”, os partidos da oposição preferiram olhar para outras páginas do relatório, nomeadamente para a página onde os técnicos dizem preto no branco que o Governo não disponibilizou os meios solicitados.

Com o PCP a acusar a direita de “só ter lido uma página, a 148, das 276 páginas do relatório”, e com o PS a acusar o PSD de ter tirado conclusões ainda antes de ter lido o relatório, a verdade é que as críticas maiores vieram daí, do PSD e do CDS. O PSD, pela voz da deputada Emília Cerqueira, começou logo por dizer que “o relatório desmente categoricamente” o “paraíso” descrito pelo Governo, com o deputado Carlos Peixoto a reforçar depois que “o Governo falhou” porque ”ignorou os avisos de risco sério” de incêndios em outubro de 2017, “retirando meios aéreos e efetivos para o combate”. Por essa razão, disse, o executivo socialista deveria “assumir as suas responsabilidades e reconhecer que não fez aquilo que devia para evitar um drama sem precedentes” em Portugal.

“O Governo comporta-se com soberba, limitando-se a ações de propaganda e a tentar passar a culpa para os proprietários das florestas, para os autarcas, para a natureza e até para a comunicação social. O Governo só faz propaganda. Na última ação de propaganda, no sábado, os ministros demoraram mais tempo a vestir as respetivas indumentárias do que a limpar efetivamente a floresta”, afirmou o deputado do PSD.

Também o CDS responsabilizou o Governo em toda a linha. Além de ter procurado explorar a polémica dentro do próprio PS sobre os eventuais erros do relatório, os centristas criticaram o “disco riscado” do governo, por ignorar a parte do relatório onde os técnicos independentes tecem críticas à falta de prevenção e à falta de meios para combate disponibilizados naquela altura. “Começa pelo princípio, fala no fim, mas sobre todo o corpo do relatório… zero. Começa por dizer condições extremas, únicas, furacão Ophelia… e salta para medidas do Governo de limpeza das matas”, disse o deputado Telmo Correia, dirigindo-se ao ministro Eduardo Cabrita e criticando a “propaganda” deste fim de semana, em que o Governo em peso foi limpar terreno para dar o exemplo.

Bloco de Esquerda e PCP também criticaram, mas não se focaram na responsabilização do atual Governo — focaram-se sim nas políticas anteriores. O bloquista Carlos Matias sublinhou que as falhas vêm de “décadas de políticas de Governos sucessivos”, e que a prioridade deve ser a reforma da política florestal, enquanto os comunistas sublinharam que o Governo não deve “passar as culpas para os pequenos e médios produtores florestais e as responsabilidades para as autarquias”, e apontaram o dedo aos “partidos do despovoamento”, leia-se PS, PSD e CDS. Todos têm culpa, disseram, por “40 anos de políticas de direita”.

Já Heloísa Apolónia centrou-se no caráter nefasto da monocultura do eucalipto — ponto em que atacou “a política de liberalização” do cultivo desta espécie seguida pelo anterior Governo, designadamente pela então ministra da Agricultura Assunção Cristas (que não estava presente no debate). Além da questão da monocultura do eucalipto, e da predominância do pinheiro bravo, Pedro Soares, do Bloco de Esquerda, exigiu também que os pequenos proprietários sejam efetivamente apoiados, caso contrário, avisou, as unidades de gestão florestal vão falhar.

Uma coisa é certa: do problema dos eucaliptos ao problema da falta de políticas de combate à desertificação e proteção do interior, nem BE, nem PCP nem PEV se dedicaram a analisar a dita página 148, onde os técnicos independentes apontam para as falhas concretas do Governo na disponibilização de meios.