Com o restaurante Pesca aberto há pouco mais de meio ano, o chef Diogo Noronha e o barman Fernão Gonçalves rumaram ao Algarve para mostrar que a cozinha pode e deve ser sustentável, sazonal, com os alimentos certos ao longo do ano e através, em grande parte, da promoção dos produtos locais. Foi no Hotel Boutique Casa Mãe, instalado num edifício do século XIX, em Lagos, que o chef procurou levar aos pratos dos convidados e hóspedes o “sabor a mar”, com o peixe e marisco colhidos no sul do país.

No primeiro de dois dias de evento, o chef presentou os convidados com um menu de degustação que incluía pratos como o “Tártaro de Bonito” ou o “Pargo legítimo na brasa”, onde “tudo é comestível”, até as flores que muitas vezes parecem adereços. “Estudamos as ervas e as flores para termos a certeza de que poderão ser servidas aos nossos clientes e muitas vezes somos acompanhados por biólogos e pessoas com esse tipo de conhecimento”, explica Fernão Gonçalves.

Da horta para o prato

No segundo dia do evento, teve lugar um workshop com o tema “from farm to table”, que é como quem diz, diretamente da horta para a mesa. Ou perto disso.

“O objetivo é que os alimentos sejam servidos o mais próximo da sua natureza possível, muitas vezes sem estarem cozinhados completamente”, explica o chef, enquanto demonstra que alguns peixes e mariscos são mesmo cozidos com água do mar. “Só assim se consegue um sabor mais autêntico”.

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Mas cozinhar de modo mais sazonal — porque alguns produtos não estão disponíveis em determinadas alturas do ano, ou são menos abundantes — implica correr riscos e apostar em ementas e receitas cujos alimentos muitas vezes podem não estar disponíveis, ou acabar por usar outros que, por algum acaso meteorológico, se tenham acabado por desenvolver mais rápido.

Diogo Noronha na horta do Hotel. / DR

“Na ementa do jantar acrescentei ervilhas com vagem, que já estavam prontas, embora ainda não fosse suposto”, mas é isso que permite às pessoas experimentar o que de mais fresco as hortas oferecem, explica o chef.

“A cozinha está cheia de desafios, e os chefs têm de ter intuição e arriscar, porque a intuição leva-nos a experimentar coisas novas, a experimentar novas texturas com combinações de sabores que não são tão evidentes”, refere Diogo Noronha.

Numa agricultura totalmente biológica, com total ausência de químicos — que acabam por esgotar mais rapidamente a fertilidade do solo — e respeitando apenas o natural crescimento dos alimentos, as mudanças na meteorologia podem trazer várias dores de cabeça. “Mas essa é a realidade e temos de nos adaptar a ela”, frisa Diogo Noronha. E são essas mesmas mudanças de temperatura que, com o passar dos anos, trouxeram ao Algarve alimentos como o abacate e ao arquipélago da Madeira o maracujá.

“A mudança nas cozinhas portuguesas já está a acontecer, devido aos novos alimentos”, frisa Diogo Noronha. “Por isso é que estas iniciativas e parcerias são tão importantes”. A verdade é que mesmo assim Portugal continua a ser país de grandes importações, explica o chef. Como é o caso da amêndoa.

“Temos mais do que capacidade para produzir o número de amêndoas que ainda mandamos vir de fora”, sublinha. Mas há uma razão para que assim seja: os incêndios que no ano passado assolaram o país levaram a que muitos produtores cortassem as árvores nos seus terrenos, como prevenção para este ano e depois da pedida limpeza por parte do governo.

À parte disso, e para que a cozinha portuguesa se sustente ainda mais nos produtos locais, falta o investimento das autarquias e mudar mentalidade, diz Diogo Noronha. O chef dá o exemplo do vinho — e da vinha — que fica cada vez mais a cargo de pequenos e grandes produtores, mas que depende cada vez mais do poder estatal para sobreviver.

“Conheço produtores que me dizem que fazem a limpeza das suas vinhas, e que gastam milhares de euros de cada vez que limpam. Mas a multa por não limpar são 200 euros, é claro que preferem não as limpar, e acabam também elas por sair lesadas dos incêndios”, explica Diogo Noronha.

“Falta quem legisle e inspecione este tipo de produção. Depois falta que as pessoas se unam para promover o que é nacional, e a distribuição desses mesmos produtos”

Talvez mais importante do que isto tudo seja ainda, frisa o chef, a disponibilidade de cada um para pagar uma cozinha sazonal, embora o “preconceito de que os produtos biológicos são caros” não seja verdade. “Aquilo que acontece é que as grandes superfícies alimentam ‘esta máquina’ do consumo e esmagam os mais pequenos”, acrescenta Fernão Gonçalves. “Ter tudo disponível a tempo inteiro não é real na natureza, mas é essa a realidade mundial”.

Da cozinha para a música. Com cocktails pelo meio

O evento na Casa Mãe terminou com uma tarde de música, a cargo do chef e cocktails, feitos pelo barman. Ambos já trabalham juntos há cerca de cinco anos e não é a primeira vez que desenvolvem esta “simbiose”, como lhe chamam. “Foi uma coincidência feliz ter conhecido o Fernão. Foi há uns anos, quando trabalhávamos para a mesma pessoa, eu tinha aberto o [restaurante] Casa de Pasto e precisava de um barman”, conta Diogo. E foi na Pensão Amor, no Cais do Sodré, em Lisboa, onde trabalhava Fernão, que chef encontrou o barman de que precisava.

“Ele chegou-se à frente como faz sempre, e como também vem da restauração é muito versátil e tem outra sensibilidade para perceber o funcionamento da cozinha, partilhar as mesmas preocupações e interesses”, o que lhes permite abrir outros horizontes, agora juntos no Pesca, conta Diogo Noronha.

Fernão Gonçalves na preparação dos cocktails. / DR

A Casa Mãe foi também mais um lugar onde ambos puderam partilhar aprendizagens e absorver aquilo que consideram ser “outras verdades” na cozinha. “São precisos mais eventos destes e estas sinergias, trabalhar com outras equipas. Sair da nossa zona de conforto e não ter medo de errar, porque errar também é crescer”, refere Fernão.

Ainda este ano, tanto Diogo Noronha como Fernão Gonçalves esperam poder chegar a mais hortas e produções para continuar com eventos como este que teve lugar na Casa Mãe, em Lagos. Nunca sem antes fazer aquilo a que o chefe chama “visita técnica”, umas semanas antes, para perceber com o que é que contam. Depois, e porque o que interessa é que “o resultado final destas experiências seja agradável”, o objetivo do chef e do barman é “levar a filosofia da cozinha sustentável a outros projetos”.