“Vai, faz a fila e vem uma de cada vez
Vai, faz a fila e vem uma de cada vez
Vai, faz a fila e vem f…” (Vai faz a fila, de Mc Denny)
O próprio Youtube avisa: o vídeo que pretende abrir pode ter conteúdos “inapropriados”. Quando se procura uma música de MC Denny, um cantor funk popular no Brasil, com o nome “Vai faz a fila” não se espera uma mensagem destas. Mas, quando se começa a ouvir, percebe-se o aviso e entende-se porque houve tantas reclamações ao Spotify. “Vai faz a fila” foi uma das dez canções mais escutadas no Spotify Brasil, com mais de 3 milhões de reproduções, mas acabou por ser retirada depois de vários utilizadores denunciarem os seu conteúdo. É a segunda música brasileira, com conteúdo semelhante, eliminada este ano daquela plataforma musical. A primeira foi a “Só Surubinha de Leve”, de MC Diguinho,
“Tá suave, vem, novinha, perder tua virgindade
Safadeza, sacanagem, muita sucessagem
Vem, novinha safadinha, perder sua virgindade
Safadeza, sacanagem, muita” (Vai faz a fila, de Mc Denny)
O funk carioca, como é chamado, nasceu nos anos de 90 nas favelas do Rio de Janeiro, e tem ganhado cada vez mais popularidade, não só pelo seu estilo musical, mas pelas letras que põem a nu a realidade que se vive nos bairros brasileiros mais pobres. “É um reflexo da sociedade que vivemos, que é machista, mas as letras que fomentam a violência são uma minoria”, diz ao El Mundo Mc Leonrado, líder da Associação de Profssionais e Amigos do Funk. Opinião diferente tem a antropóloga Heloisa Buarque de Almeida, da Univerdade de São Paulo, para quem estas músicas agora banidas do Spotify mostram como a cultura da violação se banalizou na sociedade brasileira.
A descrição que estas músicas fazem é muito semelhante a vários casos de crimes de violação em grupo que têm chegado às autoridades brasileiras e causado grande debate nas redes sociais, levando mesmo a manifestações de movimentos cívicos femininos nas ruas. É que, nestes debates, é comum apontar-se o dedo ao sexo feminino. Estes crimes, segundo um relatório do Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (IPEA), um organismo público que serve de base à política brasileira,”continuam sendo observados como fatalidades que se relacionam com descuidos e irresponsabilidades de quem sofreu os abusos”.
“Tá suave, vem, novinha, perder tua virgindade
Safadeza, sacanagem, muita sucessagem
Vem, novinha safadinha, perder sua virgindade
Safadeza, sacanagem, muita” (Vai faz a fila, de Mc Denny)
Nesse relatório são analisados dois casos que nos últimos anos geraram grande controvérsia no Brasil. Um relativo ao assédio sexual por via das redes sociais de que foi vítima uma menina de apenas 12 anos que participou no programa Master Chef Júnior. Outro relativo a uma jovem de apenas 16 anos, cujas imagens suas nua e inconsciente foram divulgadas na internet depois de ter ser violada por 33 homens.
Neste último caso, um dos agressores, que se fotografou ao lado da vítima depois do crime, publicou a imagem na sua página de uma rede social e assumiu explicitamente o crime como se de um ato heróico se tratasse. A queixa só chegaria às autoridades pelas mãos de terceiros, porque a vítima temeu ser “julgada” pela opinião pública. No primeiro interrogatório policial a jovem viveu mesmo esse julgamento, quando um polícia insistiu em perguntar-lhe se era normal ela ter relações sexuais do género, se consumia drogas e se teria provas da violação. O polícia acabou por ser afastado da investigação e o caso tem servido de exemplo para outras intervenções. “O tom do delegado era de acusação em relação à menina, parecia ser sua principal preocupação categorizar como crime algo que não poderia provar-se enquanto tal. Depois de ampla divulgação de sua postura no interrogatório, o delegado foi afastado do caso”, descreve o relatório.
Mais. Segundo o documento consultado pelo Observador, as reações ao caso da jovem de 16 anos violada por um grupo de agressores “polarizaram-se entre a indignação com o estupro e o descrédito diante da versão da vítima”. “Ela recebeu ameaças de morte de um público muito maior que o dos agressores, foi chamada de mentirosa e questionada acerca de seu comportamento, categorizado de moralmente inadequado, o qual explicaria e justificaria, segundo esta concepção”, lê-se.
“O caso de uma menina de 16 anos violada e machucada por 33 homens, filmada, fotografada e exposta na Internet não gerou comoção de todos, ao contrário, agenciou discursos que culpabilizavam a vítima em relação ao que ela vestia, com quem se relacionava e se estava ou não alcoolizada ou drogada. Além disso, quando a empatia é aventada, ela frequentemente se direciona para os pais que tiveram que ver suas filhas passarem por isso. Não se trata de um entendimento de que o estupro é em si grave. O sofrimento das mulheres não é partilhado”, conclui o relatório do IPEA.
“Vou socar na tua b… sem parar
E se você pedir pra mim parar, não vou parar
Porque você que resolveu vir pra base transar
Então vem cá, se você quer, você vai aguentar” (Vai faz a fila, de Mc Denny)
Segundo o El Mundo, que cita dados estatísticos do IPEA, a cada duas horas e meia uma mulher é vítima de violação coletiva no Brasil. Significa isto que, em 2016, se registaram 3536 crimes de violação coletiva e que, por dia, se registaram cerca de dez vítimas. Os números são o dobro dos registados em 2011, quando as autoridades brasileiras começaram a perceber o fenómeno e começaram a separar estatisticamente os números das violações individuais destas. Se atentarmos ao total de violações (individuais e coletivas), conclui-se que todos os anos existem 50 mil vítimas de violação no Brasil e que a maior parte (70%) são menores. Os números são ainda mais relevantes quando se percebe que apenas 10% das vítimas se queixam efetivamente. Significa assim que, feitas as contas por aquele instituto, na verdade todos os anos existem 450 mil vítimas de violação no Brasil.
Mas se as vítimas não se queixam, o sistema penal também parece não ser eficaz. Só 15,7% dos suspeitos acusados de violação são efetivamente presos. As autoridades não estão mesmo preparadas para lidar com estes casos, como denunciam os vários relatórios do IPEA. O próprio Ministério da Saúde brasileiro já reconheceu que a “maioria dos casos registados em hospitais não chegam a ser investigados”.
“Surubinha de leve
Com essas mina maluca
Taca a bebida
Depois taca e fica
Mas não abandona na rua
Só uma surubinha de leve
Surubinha de leve
Com essas mina maluca
Taca a bebida
Depois taca e fica
Mas não abandona na rua” (Só surubinha de leve MC Diguinho)
Liberdade de expressão ou crime?
O carioca Mc Diguinho conseguiu chegar ao top do ranking das músicas brasileiras mais ouvidas nas plataformas digitais e foi também o primeiro a gerar uma onda de indignação nas redes sociais. A sua música foi acusada de promover a violação (estupro no Brasil) e as manifestações de indignação foram tantas que a sua música acabou excluída do Spotify e do Youtube (onde contava já com 15 milhões de visualizações).
A principal manifestação contra o conteúdo musical partiu de uma estudante brasileira, Yasmin Formiga, que publicou na sua página do Facebook uma imagem sua, sem maquilhagem e com várias marcas de agressão no rosto. Entre as várias mensagens que quis passar ao cantor, dizia-lhe que “a sua música aumenta os dados de femicídio”. A publicação obteve mais de 120 mil partilhas e vários internautas aderiram à onda de protestos.
A Secretaria Nacional de Política Para Mulheres emitiu uma nota repudiando as músicas “Só surubinha de leve” e “Vai faz a fila”, de MC Denny, pedindo ao Ministério Público (MP) que atuasse. O MP do Rio de Janeiro já disse que estava atento às letras de funk que estavam a aparecer e que estava a reunir as queixas contra estes singles.
Ainda em 2017 chegou mesmo a haver uma petição, que reuniu mais de 20 mil assinaturas e foi entregue ao Senado, para criminalizar o funk. A iniciativa foi promovida por um empresário paulista que considerava as músicas deste estilo musical como um risco para a saúde pública e para os adolescentes. Mas a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa impediu que a proposta se transformasse numa lei.
Em fevereiro, segundo noticiou a Veja, a Sociedade Brasileira de Pediatria também pediu ao Ministério Público da Infância e Juventude do Estado do Rio de Janeiro para inibir a difusão de produtos culturais “que façam apologia ao estupro, estimulem o consumo precoce de álcool e drogas e banalizem o corpo e as relações sexuais”. O texto menciona produções musicais, editoriais e audiovisuais, mas também ataca os cantores de Funk, cujas músicas foram banidas do Spotify.
O jornal Gazeta do Povo, reuniu cerca de 5o músicas de funk e mostrou a um conjunto de juristas para perceber se estas podiam estar a violar o código penal quando este proíbe a incitação e a apologia do crime. “A maioria dessas composições está dentro dos limites da liberdade de expressão e artística. Algumas são meramente tendentes ao elogio implícito da violência e ao abuso de drogas”, explicou o professor de Direito Penal e advogado criminalista, Gustavo Scandelari aquele jornal. “Nenhuma das letras selecionadas se aproxima da apologia ao crime, por não tratarem de fatos concretos ou pessoas conhecidas. Da mesma forma, em nenhuma letra configura incitação porque elas não comandam ou conclamam ninguém à prática de crime”, considerou ele. A maior parte dos especialista ouvidos teceu considerações semelhantes.
A Secretaria de Segurança Pública de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, lançou no Dia Internacional da Mulher uma exposição que relaciona letras de músicas populares ao machismo, violência doméstica, feminicídio e estupro.