“O futebol domina quase tudo na Argentina. Por isso, o impacto de uma notícia assim é muito maior num país onde a bola é uma religião e todos os meninos e meninas sonham jogar nas camadas jovens do seu clube. Milhares de pais vivem estas horas aterrorizados com a ideia de que os seus filhos, que vivem em pensões dos clubes ou passam lá boa parte da semana, tenham sofrido abusos similares. No entanto, Garibaldi explica que os pedófilos só abusam dos meninos especialmente desprotegidos”, escreve o El País na sua edição desta terça-feira. Uma semana depois, aquilo que começou como um simples rumor por confirmar tornou-se num escândalo ainda com limites por definir e que envolve uma rede de abusos sexuais de menores de clubes como o Independiente ou o River Plate. E o futebol argentino encontra-se em choque com o caso.

“Davam 200 pesos [oito euros], uns boxers, uma recarga do passe e eles acediam. São rapazes pobres, que estão longe das suas casas, sem os seus pais, muito vulneráveis”, explicou Maria Soledad Garibaldi, procuradora que se encontra a chefiar a mega investigação desencadeada para detetar todos os casos de abusos sexuais de menores e que já levou à detenção de seis pessoas. Em traços gerais, a justiça argentina acredita que existia uma rede de abusos de jovens da formação entre os 14 anos e categorias mais baixas, que procurava os mais desfavorecidos e dava pequenas ofertas em troco de sexo. O Independiente foi o primeiro clube no centro das acusações, com relatos de abusos de pelo menos sete jogadores, mas surgiu agora também o River Plate no caso, com denúncias de uma médica que trabalhou nas camadas jovens entre 2004 e 2011. E não ficará por aqui.

Tudo começou há pouco mais de uma semana, quando um jogador das camadas jovens do Independiente não aguentou mais e desatou num pranto à frente de um dos psicólogos que trabalha com o clube de Avellaneda. Quebrou, por completo. E relatou tudo o que se passava, não só com ele mas com outros companheiros. O responsável falou com o clube, que foi de imediato apresentar o caso à justiça e assim começou a investigação. “O Independiente fez a correspondente denúncia e colocou à disposição todos os elementos na sua posse e o pessoal vinculado à área para que a Justiça atue. Lamentamos este tipo de atos que ligam a instituição a temas tão delicados e iremos até às últimas consequências para resolvê-los”, comunicou o emblema argentino. Na passada sexta-feira, foram detidos mais dois suspeitos: Alejandro Carlos Dal Cin, agente de jogadores, e Juan Manuel Díaz Vallone, uma das pessoas encarregues de organizar torneios de futebol para escalões mais jovens. Ambos tinham um mandato de captura nacional e internacional, como revelou o diário argentino Olé.

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Apoiado nos relatos de menores e nas provas entretanto recolhidas, as autoridades conseguiram perceber que as primeiras abordagens aos jogadores eram feitas através das redes sociais, entre Facebook, Instagram e Twitter, e metiam depois ofertas de quantias (pequenas) de dinheiro, roupa interior, chuteiras e recargas do passe dos transportes públicos, como contou a Marca, que explica também que, através desse histórico de conversações, foi possível intercetar os nomes associados a essa rede. Martín Bustos, árbitro assistente de jogos das camadas jovens (que incorre numa pena bem mais pesada, caso se confirme o abuso consciente de menores, por ser portador do vírus HIV), e Carlos Tomás Beldi, advogado do juiz de campo que destruiu o telemóvel do cliente para ganhar tempo (está acusado de encobrimento agravado), foram os dois primeiros detidos. Silvio Ernesto Fleyta, um estudante de 24 anos, e Leonardo Cohen Arazi, um relações públicas conhecido no meio, foram também presos por recrutarem e abusarem de jovens jogadores do Independiente que vivem na pensão de Villa Domínico.

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“Em primeiro lugar, quero destacar a coragem destes rapazes para contarem tudo o que se passou mas não vamos terminar por aqui, temos menos de dez dias de trabalho. Não sabemos se conseguimos desmontar toda esta organização. Temos provas de que existem rapazes de outros clubes que são vítimas e querem também contar o que aconteceu. Esta estrutura não funcionava no Independiente mas sim nas camadas jovens de clubes por pessoas alheias às pensões onde ficam”, começou por destacar a procuradora Maria Soledad Garibaldi depois das detenções de Dal Cin e Vallone, na passada sexta-feira.

“São pelo menos sete os rapazes que foram vítimas, com vários episódios. Há uma vítima que teve vários casos de abuso. Todos os detidos estão acusados de delitos contra a integridade sexual e foram assinalados pelas próprias vítimas, além de termos material pornográfico e outros elementos de prova. Estou convencida que os testemunhos são verosímeis e a psicóloga com quem estou a trabalhar também confirma isso mesmo. Aliás, existem sinais de trauma nos rapazes”, acrescentou, antes de destacar também que todos os advogados e restante pessoal assinaram uma cláusula de confidencialidade em relação ao nome e aos relatos das vítimas que, caso seja violado, irá constituir um crime de desobediência.

Ainda assim, houve um episódio aterrador que entretanto saiu na imprensa argentina e que explica com maior detalhe o modus operandi dos agressores. Havia um jovem futebolista que “marcava” alguns menores alojados na pensão do Independiente e oferecia-lhes dinheiro (suspeita-se entretanto que também ele seria vítima de abusos). Depois de estarem convencidos, quatro adultos levavam os rapazes para um apartamento em Buenos Aires onde estava à espera o “cliente”, um homem maior que pagava para ter sexo com adolescentes. O árbitro Martín Bustos é tido como o cabecilha do grupo.

Agora, existe uma nova denúncia que envolve mais três menores (dois rapazes e uma rapariga) que estiveram na pensão dos Millonarios, onde ficam os jovens talentos da formação do River Plate. “Vamos entregar a denúncia para que comece a investigação. Uma mulher que foi médica no clube durante sete anos, até 2011/12, corroborou as versões de algumas famílias e teve conhecimento de que houve abusos de menores que estavam na pensão do River Plate. Havia uma versão de que uma pessoa fazia as abordagens três vezes por semana e abusava de menores. Também se suspeita que esta pessoa serviu de ligação entre os menores e terceiros. Ela tomou conhecimento disso através do psicólogo do clube, a quem os menores revelaram a sua angústia e acabaram por revelar que tinham sido abusados”, explicou Andrés Bonicalzi, advogado da Associação de Ajuda às Vítimas de Violação (AVIVI) em declarações reproduzidas pelo jornal Olé.

“Essa pessoa não era membro da instituição mas era conhecida de todos, mexia-se dentro do clube. Essa pessoa era transexual e conhecido de todos. A médica colocou a questão à sua chefe na área da saúde mas não prestaram atenção, disseram-lhe para não se meter, e pouco depois colocaram termo ao seu vínculo. E o psicólogo também foi dispensado”, completou. “Depois da denúncia apresentada esta segunda-feira pela AVIVI, o River Plate comunica que oferecerá toda a colaboração para a reconstituição dos atos ocorridos entre 2004 e 2011 e irá tomar conhecimento dos pormenores para poder levar à Justiça todos os dados e elementos que tenha à sua disposição que esclareçam a situação”, salientou o clube em comunicado.

“Durante a investigação vimos que os pedófilos não conseguiam aceder aos rapazes que tinham maior poder aquisitivo porque, após serem abordados, bloqueavam-nos no WhatsApp ou nas redes sociais. Mas os outros, aqueles mais pobres, aceitavam. Ofereciam algum dinheiro, pagavam uma viagem ao interior para ver os seus pais, umas chuteiras. São miúdos que não têm maneira de algum dia chegarem a isso. Pagavam 200 a 800 pesos [oito a 32 euros], em função do que lhes faziam”, rematou Maria Soledad Garibaldi nas declarações ao El País reproduzidas esta terça-feira, num caso que está a abalar e muito não só o futebol mas também a própria sociedade argentina. E que promete não ficar por aqui.