Há uma mudança de voo para hoje. Vai no voo para o Porto que parte às 7h55.
— Esse voo serve para cobrir a greve?
— Não sei, não tenho essa informação.
— Se for esse o caso, pode começar a ligar a outra pessoa. Lamento muito.
— Então não quer trabalhar hoje?
— Estou disponível para qualquer outro voo, mas não quero voltar ao Porto, sabendo que hoje estão em greve.

A conversa gravada, e divulgada por vários órgãos de comunicação social, decorreu entre a central de escalas e uma tripulante de cabine da Ryanair. A empresa irlandesa tentava que a tripulante viajasse para o Porto para substituir colegas grevistas em Portugal e desta forma assegurar os voos. O Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC) denunciou a situação. A Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) desencadeou uma ação inspetiva para averiguar as alegadas irregularidades relacionadas com o direito à greve dos tripulantes da companhia aérea.

“A ACT tomou conhecimento de alegadas irregularidades relacionadas com o direito à greve dos tripulantes de cabine da companhia aérea Ryanair e desencadeou de imediato uma visita inspetiva aos aeroportos de Lisboa, Porto e Faro que se realizou no passado dia 29 de março”, respondeu a autoridade ao Observador. Esta intervenção ainda se encontra a decorrer e conta com a colaboração dos sindicatos do setor e outras autoridades nacionais. “A confirmar-se alguma situação de violação do direito à greve ou outras irregularidades, serão mobilizados os instrumentos inspetivos adequados, nomeadamente, se for o caso, desencadeados os procedimentos contraordenacionais previstos na lei.”

Pode ouvir a conversa telefónica divulgada pela SIC notícias entre os minutos 1:05 e 2:12.

A violação da proibição de substituição de grevistas, prevista no artigo 535.º do Código de Trabalho, constitui uma contraordenação muito grave, lembra Margarida Costa Gomes, especialista em Direito do Trabalho. De acordo com a legislação portuguesa, “o empregador não pode, durante a greve, substituir os grevistas por pessoas que, à data do aviso prévio, não trabalhavam no respetivo estabelecimento ou serviço nem pode, desde essa data, admitir trabalhadores para aquele fim”. Logo, um tripulante que trabalhasse normalmente noutro país que não Portugal não poderia substituir os grevistas nacionais. Assim como não se poderia deslocar um tripulante de Lisboa para o Porto com esse objetivo.

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Caso diferente seria se uma tripulação completa, num outro avião, realizasse a mesma rota — por exemplo, Porto-Dublin-Porto — ou no sentido inverso — Dublin-Porto-Dublin. A verificar-se este caso, poderia não ser considerada uma violação do direito à greve, referem os advogados contactados pelo Observador. Não seria uma substituição dos grevistas individualmente no voo que estava planeado, mas a realização de um novo voo. Para a greve prevista para esta quarta-feira, dia 9 de abril, a Ryanair admite fazê-lo. “Esperamos operar o nosso horário completo, se necessário, com recurso a aeronaves e tripulação de cabine de outras bases fora de Portugal“, disse a empresa em resposta escrita ao Observador.

O que não pode é fazer uma greve pessoal em apoio a alguém que está noutro país. Se não está em greve não tem o direito de fazer greve. Se for esta a sua decisão, será a sua decisão, mas terá de lidar com as consequências”, terá dito o diretor de Recursos Humanos da Ryanair à tripulante de cabine na chamada gravada.

Este desrespeito pela legislação portuguesa e pelos trabalhadores não é novo e foram estes os motivos que levaram à greve, refere Bruno Fialho, diretor do SNPVAC. Em causa está, sobretudo, a proteção do trabalhador na parentalidade e na segurança e saúde no trabalho, direitos inalienáveis previstos pela Constituição Portuguesa e que abrangem os trabalhadores destacados ou os trabalhadores que tendo contrato segundo a lei de outro país, desenvolvem a atividade em Portugal.

Disposições não derrogáveis por acordo

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O artigo 7.º do Código de Trabalho define as condições de trabalho de trabalhador destacado. Este não perde o direito a:

  • Segurança no emprego;
  • Duração máxima do tempo de trabalho;
  • Períodos mínimos de descanso;
  • Férias;
  • Retribuição mínima e pagamento de trabalho suplementar;
  • Cedência de trabalhadores por parte de empresa de trabalho temporário;
  • Cedência ocasional de trabalhadores;
  • Segurança e saúde no trabalho;
  • Proteção na parentalidade;
  • Proteção do trabalho de menores;
  • Igualdade de tratamento e não discriminação.

Código do Trabalho - Artigo 7.º

“O contrato individual de trabalho é regulado pela lei escolhida pelas partes [neste caso, lei irlandesa] nos termos do artigo 3.º. Esta escolha da lei não pode, porém, ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo, ao abrigo da lei que, na falta de escolha [neste caso, o local onde é normalmente prestado o trabalho], seria aplicável nos termos dos n.os 2, 3 e 4 do presente artigo”, refere o artigo 8.º do regulamento n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a lei aplicável às obrigações contratuais.

Ou seja, ainda que o contrato seja irlandês e que indique que a base é Dublin — conforme informa Bruno Fialho —, o trabalhador não pode ser privado das leis imperativas do local onde presta habitualmente o seu trabalho. O diretor do sindicato acrescenta que, de acordo com o contrato, os tripulantes devem encontrar-se a meia hora dos aeroportos onde prestam serviço — Lisboa, Porto, Faro ou Ponta Delgada.

Tendo em consideração que estes trabalhadores prestam habitualmente serviço em Portugal, Luís Miguel Monteiro, especialista em Direito do Trabalho, entende que deve ser cumprida a lei portuguesa, nomeadamente as leis obrigatórias. O advogado admite, no entanto, que estas são as condições gerais e que desconhece se existem normas específicas para a aviação civil.

Tripulantes da Ryanair marcam greve para 29 de março, 1 e 4 de abril

Bruno Fialho fala em colegas portugueses e estrangeiros que não puderam gozar a licença de parentalidade ou que foram penalizados porque o fizeram. Outro caso, é o dos tripulantes que adoeceram, mas que não viram a sua baixa médica reconhecida pela empresa que os chamou a Dublin para justificar as faltas. O sindicalista acusa a empresa de obrigar as pessoas a irem trabalhar doentes ainda que isso seja um atentado para a saúde pública. “Há o perigo de contágio de doenças a bordo e os tripulantes podem não estar em condições de garantir a segurança dos passageiros”, no caso de uma saída de emergência, por exemplo.

Outros motivos de queixa por parte dos trabalhadores são as vendas a bordo. “A nossa principal função é a segurança a bordo”, lembra Bruno Fialho. Mas acrescenta que, para a Ryanair, quem não atingir os objetivos de venda é penalizado — não é chamado para voos. Como estes tripulantes não têm ordenado mínimo garantido, ficar sem voar significa ficar sem ordenado. Além disso, estes trabalhadores não têm subsídio de férias, nem décimo terceiro mês. Mas, diz o sindicalista, estas questões não fizeram parte da greve que afetou os voos no fim de semana da Páscoa. O sindicato não queria misturar “motivos financeiros” com os restantes direitos dos trabalhadores.

O direito à folga

Uma pessoa disse-me que ia para o Porto. E agora, vejo uma notificação de que vou para o Porto, depois Porto-Dublin e depois Dublin-Porto. Depois durante a noite na minha folga. Não é justo. Estou de folga.

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Período de repouso é o período de tempo contínuo, ininterrupto e definido, antes ou depois de um serviço, durante o qual um tripulante é libertado de todas as tarefas, incluindo os serviços de assistência e reserva.

Dia de folga único é um período em que o tripulante é libertado de todas as tarefas, incluindo o serviço de assistência, composto por um dia ou duas noites locais, e que é comunicado com antecedência. Pode incluir um período de repouso.

Regulamento n.º 83/2014 da Comissão Europeia para operações aéreas

Os contratos de trabalho da Ryanair são “baseados na lei geral” (a legislação europeia para o setor), explica Bruno Fialho. Mas as regras definem que o “trabalhador não pode ser sequer contactado no dia de folga”, refere o sindicalista. Muito menos ser chamado para trabalhar. “A Ryanair não cumpre. Os tripulantes não estão devidamente descansados.”

“O período de repouso mínimo previsto antes de um período de serviço de voo com início na base de afetação [onde o tripulante normalmente inicia o serviço] deve ser pelo menos igual ao período de serviço precedente, ou de 12 horas, conforme o período que for mais longo”, refere o regulamento europeu (n.º 83/2014). “O período de repouso mínimo previsto antes de iniciar um período de serviço de voo que começa longe da base deve ser pelo menos igual ao período de serviço precedente, ou de 10 horas, conforme o período que for mais longo. Este período deve incluir a possibilidade de 8 horas de sono para além do tempo necessário para a deslocação e a satisfação de necessidades fisiológicas.”

O regulamento europeu é claro na responsabilidade que tem o operador em garantir que os tripulantes têm tempo para as tarefas em terra, que têm os devidos períodos de descanso e que têm conhecimento da escala com antecedência suficiente para planearem esse repouso. Cabe ao operador garantir a segurança e minimizar os riscos associados à fadiga dos pilotos e restante tripulação.

Uma situação diferente é o caso dos tripulantes que se encontrem de prevenção (serviço de assistência). Nestes casos, na escala mensal do tripulante é indicado um ou mais períodos de oito horas por dia em que o tripulante tem de estar preparado para embarcar caso seja chamado para o fazer — tem uma hora para comparecer fardado no aeroporto de onde costuma partir, refere o sindicalista.

Ryanair admite voltar a recorrer a tripulantes de outras bases aéreas durante a greve

“Esta ameaça de greve é absolutamente desnecessária considerando que a Ryanair já enviou ao sindicato um acordo de reconhecimento sindical assinado e concordou reunir-se com este organismo em Dublin no dia 9 de abril”, escreveu a empresa. Os tripulantes de cabine e sindicato que os representa têm, de facto, tentado reunir com a empresa, mas sem sucesso. Bruno Fialho diz que a Ryanair não aceita reunir com outras pessoas que não os seus trabalhadores, ou seja, não aceita falar com os dirigentes do sindicato, porque estes estão afetos a outras companhias.

Nestas condições, Bruno Fialho diz que não é possível negociar com a empresa e já está a preparar, com os dirigentes de outros sindicatos europeus, uma greve de tripulantes de cabine da Ryanair em toda a Europa. Esta quarta-feira, no terceiro dia de greve agendado em Portugal, vai receber os representantes dos sindicatos alemão, espanhol e italiano.

Vamos registar a sua recusa em ir trabalhar e depois lidamos com a situação.

Atualizado às 18h30 com as respostas da Ryanair.