A Ocidente, o cinema de terror agoniza entre matadouros, salas de tortura, flatulências sobrenaturais, vampiros e lobisomens vulgarizados, sustos adolescentes e comícios de “zombies”. O terror asiático, sobretudo o de confecção sul-coreana, surge assim como uma alternativa muito estimulante e muito nutritiva para os apreciadores do género enjoados com a dieta de mediocridade, com ou sem cabidela, que lhe tem sido servida nas paragens cinematográficas mais familiares. Na sequência de fitas como “R-Point-Esquadrão Fantasma”, de Su-chang Kong, “A Criatura”, de Joon-ho Bong, “Este é o Meu Sangue”, de Chan-Wook Park, ou “Train to Busan”, de Sang-ho Yeon, eis agora “O Lamento”, de Na Hong-jin, que se perfila como o equivalente local de “O Exorcista”, de William Friedkin.

[Veja o “trailer” de “O Lamento”]

Rodado em 2016, “O Lamento” foi distinguido com vários prémios na Ásia, nos EUA e na Europa, e explora o tema da possessão demoníaca, integrando-o no contexto cultural e religioso sul-coreano, o que faz com que na história convivam, e combatam as forças do mal, um xamã budista (que executa a versão desta religião de um exorcismo) e um sacerdote católico. O realizador Na Hong-jin, que também escreveu o argumento, e antes deste filme realizou o “thriller” de acção “The Chaser” (2008) e o policial “The Yellow Sea”, situa a história de “O Lamento” no interior do país, numa vila rural assolada por uma série de horríveis assassínios, cujos autores parecem ter sido atingidos por uma estranha doença, que além dos impulsos homicidas, os cobre de pústulas e põe em histeria.

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[Veja uma sequência do filme]

Jong-hoo, um polícia local, trapalhão e algo cobardolas, começa a suspeitar que na origem dos crimes poderá estar, em vez dos cogumelos venenosos de que os media falam e os seus colegas desconfiam, um japonês idoso e esquivo que se instalou na região recentemente, e a essa suspeita junta-se outra: pode haver uma força sobrenatural malévola a presidir aos assassínios. A mesma que é responsável pelo comportamento cada vez mais estranho da sua filha pequena. Dando primeiro, e brevemente, a impressão que vai fazer um policial, Hong-jin instala depressa uma atmosfera cerrada e malsã de terror sobrenatural com implicações teológico-metafísicas, embora não construída a expensas de bateladas de efeitos digitais.

[Veja uma sequência do filme]

Em “O Lamento” o realizador confia nos actores, nos efeitos tradicionais de maquilhagem (nomeadamente, numa sequência grotesca que faz lembrar os filmes de “gore” e comédia negra de Peter Jackson como “Morte Cerebral”), no ambiente invernoso em que a acção decorre, em momentos, pormenores e sugestões visuais de ressonâncias arrepiantes (o recurso a objectos banalíssimos do quotidiano, com um colorido prendedor de cabelo de criança) e implicações malignas relacionadas com a feitiçaria (o corvo morto dentro do recipiente de soja, o animal esventrado e pendurado à porta da casa do polícia) e num par de guinadas narrativas, para concretizar aquele que é um dos melhores, mais inquietantes e mais assombrosos filmes de terror destes tempos recentes. (A produtora de Ridley Scott já está a negociar um “remake” americano).

E quando o diabo revela finalmente a sua identidade, e se manifesta em toda a sua malevolência, fá-lo sob um aspecto caracteristicamente asiático, tal como o encontramos representado em gravuras e pinturas ancestrais coreanas, japonesas ou chinesas. Mas utilizando, por outro lado, um método muito moderno e muito prosaico para se apoderar das almas humanas. Até pelo seu demónio “The Wailing” é um filme imperdível.