A companhia Ao Cabo Teatro apresenta, na sexta-feira e no sábado, no Teatro Municipal Rivoli, no Porto, a peça “Timão de Atenas”, do dramaturgo britânico William Shakespeare (1564-1616), um retrato cruel e irónico da sociedade.
Na obra, William Shakespeare apresenta a história de Timão, um ateniense que gasta toda a fortuna a entregar o dinheiro a amigos e outras personagens interesseiras, antes de se tornar um misantropo, enquanto afastado de Atenas.
‘Timão de Atenas’ é uma reflexão sobre a dívida, a mentira, a hipocrisia social. É um retrato cruel, mas ao mesmo tempo irónico, quase ‘fársico’, das relações de interesses que se estabelecem, de ‘lobbyismo’, como agora se diz. Por detrás disso tudo está a crueldade da dívida, da economia real, do deve e do haver registado, ou no nosso caso, os atores do recibo verde e da entrega do IRS”, explicou à Lusa o encenador, Nuno Cardoso, diretor artístico da Ao Cabo Teatro.
O texto vem sendo trabalhado por Nuno Cardoso desde 2010, na sequência da crise e da intervenção da troika em Portugal, em que “todo o país entra em choque traumático face à dívida e a perda de soberania”, e inaugura um programa de quatro peças intitulado “Dívidas, Dúvidas, Mentiras e Revoluções”.
“É constituído pelo ‘Timão’, o ‘Pulmões’ [do inglês Duncan MacMillan], uma reflexão de um casal sobre o ecossistema, pelo ‘Bella Figura’ [da francesa Yasmina Reza], sobre a traição, e acaba com ‘Morte de Danton’ [de Georg Buchner], uma reflexão sobre a revolução”, revelou o diretor.
Com a peça de Shakespeare, vem o “desejo de revisitar uma sociedade iludida pela sua própria vertigem, de uma forma quase subliminar e ínvia, em que o consumismo se tornou a única ideologia predominante”, que está “presente em tudo, na maneira como a sociedade se tornou visual, sem tempo, e como se organiza para, de quinta a domingo, o resto do dia ser um esquecimento da exploração do trabalho”.
O choque com o “‘economês’ que domina e ao mesmo tempo se esconde perante o ‘glamour’ de uma aparente ‘happy hour’ que domina as pessoas, e as torna ‘hiperindividualistas’ e egoístas”, encontra o momento de crise, que transforma a realidade numa “crueldade absoluta”, reproduzindo-se de forma física e digital.
“Quando uma crise acontece, seja a de 2010 ou no seio de uma família, de uma relação, de uma cidade, é eminentemente corporal, material, tem consequências de saúde. É, portanto, uma chamada brutal à realidade, à realidade animal. Foi por causa de tudo isso que decidimos fazer esta peça”, explicou o encenador.
Com uma cenografia que aponta a cidade como uma casa de banho pública e a floresta, selvagem, como uma montra de centro comercial, numa “interpretação de uma cidade” como metáfora e opinião, a representação dos atores é “dos dias de hoje”, criando em conjunto “um espaço de jogo lúdico em que a palavra é ação”, que contém “o tempo desta sociedade, mas também a recusa desse tempo”, sem o recurso à tecnologia inserida no que é “teatro no mais clássico possível”.
“Um conjunto de atores com um conjunto de elementos com um conjunto de palavras que contam uma história (…). Há uma tentativa de defender a forma da palavra, só, e do corpo como meios tão contemporâneos como os meios digitais”, comentou Nuno Cardoso, que descreveu o trabalho sonoplástico como uma aproximação a “uma espécie de teledisco dos anos 1980”.
Escrita em colaboração com Thomas Middleton, segundo apontam os historiadores da obra do ‘Bardo’, este é um texto “fortemente experimental”, que “vai buscar raízes às moralidades medievais”, mas não deixa de ser “muito dura” e violenta.
A representação da companhia Ao Cabo, com um total de 11 atores no elenco, atravessa várias linguagens, passando pela dança, o ‘vaudeville’ ou a utilização de máscara neutra, o que só foi possível fazer com “atores fantásticos, extremamente generosos”.
Na opinião de Nuno Cardoso, as manifestações em torno do modelo de apoio às artes da Direção-Geral das Artes (DGArtes) “já criaram frutos”, num trabalho “importante, que, se não fosse feito, deixava numa situação complicada”.
O diretor artístico da Ao Cabo Teatro, companhia apoiada “em menos 25% do pedido”, considera que a “expectativa” criada em torno do novo modelo levou a uma maior desilusão, e pensa que este “tem de ser trabalhado — é um bocado fastidioso e desconfiado em certas coisas”.
Apesar de ter recebido apoio, o encenador revelou que a produção de “Timão de Atenas” sofreu com os constrangimentos financeiros, porque a estreia acontece na sexta-feira, “antes sequer de saber se o apoio é homologado ou não”, pelo que há várias componentes do espetáculo que foram feitas com pagamentos adiados e a partir dos apoios dos coprodutores do espetáculo.
Da cenografia de “Britânico”, espetáculo de Jean Racine levado a cena pela Ao Cabo em 2015, foi reaproveitada uma parede para o novo espetáculo, e Nuno Cardoso diz mesmo que “nada disto seria possível se os atores e criadores não aceitassem pagamentos atrasados, menos dinheiro”.
Depois do Porto, “Timão de Atenas” é apresentado no Teatro Aveirense, em Aveiro, a 21 de abril, e no Theatro Circo, em Braga, a 27, antes de passar pelo Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, a 5 de maio, e de estar no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, de 13 a 23 de setembro deste ano.