7 de maio de 1964 foi um dia chuvoso em Manchester. Na antiga estação de caminhos de ferro de Wilbraham Road, situada no sul da cidade, 300 “beatniks” ingleses aguardavam de um dos lados da plataforma, sentados e curiosos para ouvir o que de melhor se fazia na música gospel, blues e R&B (rhythm and blues) nos Estados Unidos da América.

O festival de um dia — organizado pela estação Granada TV — incluía concertos de alguns dos músicos norte-americanos mais populares. Um deles, Muddy Waters, sobreviveria ao tempo, outros — como Cousin Joe — acabariam esquecidos. No segundo grupo, estava Sister Rosetta Tharpe, a “madrinha do rock and roll“, que nasceu em 1915, morreu em 1973 e este sábado, 14, ganha o reconhecimento (póstumo) merecido, ao entrar no Hall of Fame do Rock.

A carreira foi longa e com muitos percalços, mas esse 7 de maio de 1964 foi dia de consagração. Poucos dos que estiveram presentes terão esquecido o momento (terá algum?). Do lado oposto ao público, Sister Rosetta Tharpe saía de uma charrete de braço dado com um homem. Os dois caminhariam pela plataforma, dançando ao som de uma banda de rhythm and blues e gospel e aproximando-se dela. Rosetta cantava com a poderosa voz espiritual com que encantara, anos antes, o público americano, que entretanto a tinha esquecido. Quando chegou perto da banda, pegou na guitarra elétrica e começou a tocar e cantar “Didn’t It Rain”. A cantora contava abrir o concerto com outro tema, mas, dada a meteorologia, achou que seria apropriado cantá-lo logo de início. O impacto foi enorme.

Causou-me uma impressão maior do que aquela que me causou o [Jimi] Hendrix, anos depois. Foi simplesmente assombroso, arrojado, o som estava fenomenal (…) É normal perguntarmo-nos como é que ela tinha a energia necessária para, tantos anos depois [do começo de carreira], ainda soar assim”, lembrou o guitarrista de blues Dave Lunt à Mojo, na edição mais recente da revista britânica (formato físico).

[O início do concerto de Sister Rosetta Tharpe em Manchester, em 1964, com os temas “Didn‘t it Rain” e “Trouble in Mind“:]

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quando deu esse concerto, Sister Rosetta Tharpe já vivera os seus tempos áureos na música. O seu percurso começara muito cedo, logo aos quatro anos, quando Rosetta (cujo nome biológico é ainda alvo de disputa — há quem diga que nasceu como Rosetta Nubin e quem afirme que o seu nome de batismo era Rosether Atkins ou Rosether Atkinson) começou a cantar e aprender guitarra. A mãe era Katie Harper, conhecida como “a mãe Bell”, uma cantora, instrumentista (tocava bandolim) e pregadora da congregação evangélica Igreja de Deus em Cristo. Pouco se sabe sobre o seu pai, exceto que era cantor e que, como a mulher, Katie, trabalhava na apanha do algodão.

Dentro do infortúnio que era o espírito desses tempos (profundamente racista, com a segregação entre brancos e negros muito presente — quando em digressão, Tharpe tinha de dormir em autocarros, já que os hotéis eram para brancos, e tinha de ir buscar comida às traseiras dos restaurantes, porque também ali não podia entrar), a cantora acabou por ter alguma sorte. O seu talento musical permitiu-lhe, muito provavelmente, não ter de trabalhar na apanha do algodão, o destino reservado à maior parte dos jovens negros da época nascidos, tal como ela, no Arkansas (não há registo ou fontes próximas que alguma vez se tenham referido a isso). Ter crescido como crente de uma igreja cujo bispo, Charles Harrison Mason (também ele negro), encorajava a expressão musical dos fiéis, a dança e o canto como formas de louvar o Senhor e a possibilidade de as mulheres também poderem pregar na igreja, também ajudou.

[“Up Above My Head“, por Sister Rosetta Tharpe:]

Aos seis anos, Sister Rosetta Tharpe já fazia parte do grupo musical evangélico da sua mãe, que misturava (em convenções religiosas e em igrejas de outras cidades e estados) cânticos e música com sermões religiosos. A residência permanente, essa tinha-se alterado já do Arkansas para Chicago, para onde se mudara com a família. Se crescimento da igreja como a maior congregação pentecostal norte-americana deveu-se sobretudo aos méritos e à popularidade de músicos como o pianista Elder Charles Beck e o guitarrista Utah Smith, Rosetta era a estrela em ascensão.

Ela sabia tocar piano, guitarra e sopros e sabia cantar. A Rosetta reuniu todos estes talentos tremendos desde muito cedo. Ela aprendia com os outros músicos e estava sempre a interagir com eles”, lembrou Anthony Heilbut, que se tornaria mais tarde amigo da cantora e que hoje, com 77 anos, é um dos mais prestigiados produtores de musica gospel.

O talento musical era já muito evidente antes mesmo de gravar as primeiras canções, aos 23 anos — então já casada com Thomas Thorpe, o seu primeiro de três maridos, um pregador da mesma congregação que acompanhava Rosetta e a mãe nas “digressões” evangélico-musicais e de quem Rosetta aproveitou o apelido para nome artístico. Segundo a Mojo, suspeita-se que fosse “infiel ou abusivo”, mas as atuações dos dois na igreja da congregação em Miami foram decisivas para o sucesso posterior da cantora.

[“The Godmother of Rock & Roll: Sister Rosetta Tharpe“, um documentário sobre a cantora e guitarrista americana]

A gravação das primeiras canções coincidiu com nova mudança de morada, em 1938. Tharpe mudou-se para Nova Iorque com a mãe. Foi aí que o famoso olheiro John Hammond a convidou para um concerto alargado na sala Carnegie Hall (para o qual convidou também Big Joe Turner, Big Bill Broonzy e Count Basie, ente outros) e foi aí que gravou pela primeira vez para a (então prestigiada) editora Decca, quatro canções — “Rock Me”, “That’s Me”, “My Man and I” e “The Lonesome Road” –, acompanhada por uma orquestra jazz. Já na altura Tharpe, então com 23 anos, apresentava-se com uma característica premonitória do caminho que a música popular seguiria nas décadas seguintes, fundindo géneros (o rhythm and blues, o gospel e o jazz). Mais tarde, em 1944, anteciparia o aparecimento do rock and roll e do blues-rock elétrico (de Jimi Hendrix).

Ela era uma mulher grande e de boa aparência. E era divina, para não dizer sublime e esplêndida. Era uma poderosa força da natureza, alguém que evangelizava os outros através do canto e da guitarra”, disse uma vez Bob Dylan no programa de rádio que manteve durante 2006 e 2009, Theme Time Radio Hour.

Revolucionária (eram muito poucas as mulheres da época que se aventuravam a compor, gravar e viajar em digressão com guitarra elétrica), Rosetta Tharpe viria a causar algum choque no público mais conservador, por misturar letras profundamente religiosas (como “My Journey to the Sky”, “Jesus is Everywhere” e “How Far From God”) com música elétrica, inspirada no blues e jazz e que antecipava o rock and roll. A sua fama crescia: era já ouvida por público evangélico, público noctívago que dançava nas discotecas de Nova Iorque e em salas de espetáculos.

Quatro anos depois do sucesso das primeiras canções (sobretudo do êxito “Rock Me”), viria novo hit, “Strange Things Happening Every Day”, que — gravado com o pianista da Decca, Sammy Price — ganharia tons de hino crítico dos anos 1940 (a II Guerra Mundial ainda decorria e um ano depois o bombardeamento a Hiroshima acentuaria a impressão de que “estranhas coisas estão a acontecer diariamente”). Tal como “Rock Me”, a canção conseguia cativar público negro e público branco (que ainda teria de esperar alguns anos pelo seu “rocker”, Elvis Presley). “Rock Me” é, aliás, considerada uma das primeiras — para alguns, mesmo a primeira — canção rock da história e foi o primeiro tema em tom gospel a chegar ao top dez das mais ouvidas do ranking da Billboard Harlem Hit Parade (mais tarde conhecido por ranking de “Discos Raciais”, ou Race Records, e hoje de tabela R&B).

O Elvis adorava a Sister Rosetta. O que realmente o atraía nela era a maneira de tocar guitarra. Ele gostava da voz dela, claro, mas o que admirava mais era mesmo a técnica a tocar — porque era tão diferente de tudo o que existia”, recordaria por sua vez Gordon Stoker, membro da banda que acompanhou Elvis Presley de 1956 a 1972, os Jordanaires, citado pela revista Rolling Stone.

A popularidade continuaria grande durante quase toda a década de 1940, com concertos e viagens por todo o país, por vezes acompanhada por grupos jazz, outras por grupos gospel, outras ainda por grupos corais brancos e negros. Curiosamente, acabaria por cair sobretudo face à afirmação da cantora gospel Mahalia Jackson, mas também pelo despontar do rock and roll branco (liderado por Elvis) e de uma cantora de R&B e gospel que Rosetta “descobriu”, convidou a ir em digressão e com quem — segundo relata, entre outros, Gayle Wald, na biografia Shout, Sister, Shout! — manteve uma relação amorosa “pouco secreta” (não era conhecida do público mas era do conhecimento da maior parte dos agentes da indústria musical da época). Chamava-se Marie Knight.

[A versão de “Rock Me” de Sister Rosetta Tharpe tornou-se o seu primeiro êxito]

Durante anos, as duas viajaram e gravaram canções. A popularidade de Sister Rosetta Tharpe, porém, começou a diminuir na mesma proporção do crescimento da popularidade de Mahalia Jackson (e, claro, de Muddy Waters, no campo dos blues), nos anos 1950. Rosetta Tharpe começou a perder fãs nos Estados Unidos da América e a procurar na Europa um público que já não tinha no seu país. O concerto de 1964, em Manchester, foi um dos mais marcantes. Outro aconteceu seis anos depois, na sua última atuação conhecida e registada, que aconteceu na Dinamarca.

Nesse último concerto, que deu três anos antes de morrer aos 58 anos (tinha 55 e, na altura, a agenda de espetáculos era já curta), Sister Rosetta Tharpe cantou “Take My Hand, Precious Lord”. As câmaras presentes registaram o momento, contou o The Guardian, aquando da estreia do documentário The Godmother of Rock’n’Roll [em português, “A Madrinha do Rock’n’Roll”] no país.

[“Ain’t No Grave Hold My Body Down”, de Sister Rosetta Tharpe]

Nessa fase da sua vida, aponta o jornal inglês, Rosetta estava “falida e deprimida”. A mãe tinha morrido há pouco tempo, Rosetta veria um pé ser amputado pouco depois e — conta a Mojo — morreria de AVC precisamente quando o amigo Anthony Heilbut lhe arranjara um contrato que previa que voltasse a gravar um disco (a editar pela Savoy Records). Nunca chegou a fazê-lo.

O funeral — em Filadélfia, onde morreu — foi discreto, a igreja ficou apenas meio cheio para a missa e Rosetta foi enterrada no cemitério de Northwood, numa campa sem inscrições. Quase 40 anos depois (há sete anos, em 2011) teve finalmente direito a uma “bonita lápide”, diz ainda a Mojo, na sua edição física. Agora, entra numa galeria de notáveis,em que estão Chuck Berry, James Brown, Ray Charles, Sam Cooke, Little Richard, Aretha Franklin, B. B. King, Stevie Wonder, Simon & Garfunkel, Jimi Hendrix e Johnny Cash — entre alguns outros.

[“Strange Things Happening Every Day” foi o primeiro tema da cantora a chegar à lista dos dez mais ouvidos de rhythm and blues]

Quando foi introduzido no Hall of Fame do rock, em 1992, Johnny Cash esteve presente e discursou na cerimónia. Chegado ao microfone, agradeceu e a dada altura soltou uma frase inesperada: “Ainda consigo ver a Sister Rosetta a tocar aquela guitarra Stellar”. Resume o The Guardian: “Com uma Gibson GS nas mãos, a Sister Rosetta conseguia levantar os mortos. E isso antes mesmo de começar a cantar”. Agora, vem o reconhecimento oficial.