Desde 1963 que a cada terceira segunda-feira do mês de setembro — data em que se celebra o Dia do Idoso no Japão — todos as pessoas com 100 anos ou mais recebiam um copo de saké (bebida alcoólica feita a partir de arroz) de prata. Em 2015, no entanto, a tradição mudou: passaram a ser oferecidas ligas banhadas a prata. O motivo? O valor gasto com cada centenário começou a ser elevado demais, tendo em conta que de ano para ano aumentavam no país.

No Japão é normal viver depois dos 100 anos, com uma qualidade e estilo de vida que, em muitos países, já não é comum ver-se. Hoje, os centenários vivem mais e melhor e Junko Takahashi, jornalista e escritora japonesa, quis saber como (e porquê). Durante mais de dois anos falou com alguns centenários para tentar descobrir se, de facto, há ou não algum segredo por trás de uma vida tão longa. No livro O Método Japonês Para Viver 100 anos juntou todas as conclusões que tirou.

“Em 2016, o Japão voltou a bater o recorde mundial de centenários registados, 65 692 no total, segundo os dados publicados pelo Ministério da Saúde, do Trabalho e do Bem-Estar. (…) Hoje há 402 vezes mais centenários do que até então, e este número não deixou de aumentar desde 1971”, lê-se na introdução do livro. E com as entrevistas, Junko quis também saber: o que é que os mais novos podiam aprender com estes centenários para uma vida mais saudável e duradoura? Muita coisa, segundo conta no livro.

Capa do livro de Junko Takahashi. / DR

Comer, orar, amar

Até há umas décadas, os japoneses não viviam tanto como, por exemplo, os europeus, mas a dieta ajudou. Atualmente, a alimentação dos japoneses é muito variada, “leve e saudável”, e isso faz a diferença, conta a escritora. “O menu quotidiano consiste num alimento principal — o arroz –, uma sopa e vários pratos assados e/ou cozidos. Um japonês consome em média 2719 kcal por dia, assim a sua dieta é muito mais suave do que a de um americano (3639 kcal) ou de um espanhol (3183 kcal)”, conclui Junko.

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Como ilha que é, o Japão também baseia os seus hábitos alimentares no peixe — especialmente sushi, a iguaria pela qual os japoneses são mundialmente conhecidos. A cozinha japonesa também tem menos gorduras do que noutros países e os habitantes do país consomem mais proteína vegetal do que animal. A carne só entrou na alimentação japonesa há relativamente pouco tempo.

Quando os Jogos Olímpicos se realizaram em Tóquio, em 1964, os japoneses tiveram algum contacto com o tipo de alimentação feito por outros atletas e noutros países. Foi aí que as coisas começaram a mudar, e comer carne passou a ser uma coisa comum e uma necessidade. Até então, “comer carne era um ato sinistro que contaminava o sangue humano”. Com o passar dos anos, o aumento no consumo levou a uma diminuição no número de AVC entre os japoneses, a principal causa de morte da população”, conta Junko.

Alguns dos entrevistados serviram a Junko, antes das entrevistas, um chá verde. No Japão, a província de Shizouka é a maior produtora da planta de chá verde do mundo, e os centenários bebem bastante ao longo do dia. “Segundo a Federação de Produtores de Chá do Japão, o chá verde contém muitos nutrientes, como a catequina, o flavonol ou a vitamina C, entre outros minerais (…) que previnem o envelhecimento e algumas doenças”, explica a escritora no livro.

“O conceito de amor foi importado do Ocidente através da tradução de livros estrangeiros”, conta Junko no livro.

No que toca ao amor, Junko conta que é difícil por os japoneses a falar. “Eles não são muito abertos a falar dos seus sentimentos ou relações, e nos mais velhos ainda é pior”. Grande parte dos japoneses que hoje têm mais de 100 anos casaram há várias décadas com pessoas escolhidas pelos pais. Houve entrevistadas que confessaram não se terem sentido felizes durante o casamentos, e homens que disseram que terem casado com as mulheres escolhidas por terceiros foi o melhor que lhe podia ter acontecido.

Junko Takahashi, autora de “O Método Japonês Para Viver 100 Anos” / DR

Segundo investigou a escritora, “o conceito de amor foi importado do Ocidente através da tradução de livros estrangeiros”, porque, até há umas décadas, a palavra “amor” designava aquilo que se sentia por cada membro da família, enquanto que aquele que se sentia entre homens e mulheres era apelidado de “luxúria” ou “romance”. Até nas traduções o amor era “explicado” através de códigos: o simples “gosto de ti” era substituído por “que linda é a Lua”.

Tendo ou não casado por amor, o certo é que estes centenários não estão sozinhos — o que os ajuda a viver bem os anos mais avançados. Têm boas e fortes relações com a família e com os outros, relembra Junko. “Os netos e bisnetos também podem dar um sentido à vida dos idosos”, disse a Junko a diretora do centro de saúde de Isen, Sawako Sawa.

“Segundo os dados de um inquérito oficial, publicados em 2014, o número de crentes no Japão — onde a religião maioritária é o Xintoísmo — é de 190 milhões de pessoas, mais do que o total da população japonesa. Não é um erro de estatística, mas sim a demonstração de que muitos xintoístas são, ao mesmo tempo, budistas”.

Quanto à religião, é certo que esta tem algum peso na vida dos japoneses, mas é vivida de forma diferente com o passar dos anos. No Japão predomina o Xintoísmo, que defende a existência de vários deuses. No Japão, a religião está intrinsecamente ligada à tradição e à cultura e, por isso mesmo, há muito japoneses que se consideram ateus. É comum entre os japoneses ir a um santuário xintoísta para receber a bênção quando nasce um bebé, celebrar o casamento numa igreja católica e que os funerais tenham lugar templo budista. Assim como também é normal nas casas haver um altar budista onde as famílias guardam pertences dos antepassados e oferecem chá e comida.

Há também registo de uma comunidade cristã no Japão, mas equivale a menos de 2% da população total. O cristianismo só começou a ser difundido em 1549, e entre 1614  e 1873 o catolicismo foi mesmo proibido no país.  Durante esse longo período, os cristãos — sobretudo os católicos — mantiveram as suas crenças em segredo, numa espécie de religião clandestina, conta Junko.

Exercício físico todos os dias. “É assim que tem de ser”

“Ultimamente, vários centenários, também conhecidos como ‘superavós’, estabeleceram recordes mundiais em vários desportos (…) e a maioria pratica algum desporto ou faz algum tipo de exercício diariamente”

Os japoneses não são o povo mais atlético do mundo, mas há vários medalhados: Miazaki é um deles, e só se inscreveu no Campeonato de Atletismo Veterano quando já tinha 92 anos, até então não praticava nenhum desporto. Hoje treina diariamente para os 100 metros e para o lançamento do peso. Mieko Nagaoka tem 102 e conta com 25 recordes mundiais e 28 nacionais de natação. Foi a primeira mulher a nadar 1500 metros com 100 anos, e também começou a nadar tarde, só depois dos 90 anos. A família apelida-a de “superavó”. Ambos demonstram que nunca é tarde para começar.

Além dos que verdadeiramente se dedicam ao desporto, outros mantêm rotinas que os ajudam a mexer-se melhor depois de passar dos 100, física e mentalmente. Todos têm medo de “perder a cabeça”. “Um dos senhores que entrevistei disse-me que tinha muitas gravatas e que todos os dias usava uma diferente consoante as pessoas que ia ver”, e uma senhora que “andava sempre toda arranjada, e depois dos 100 ainda pintava as unhas” são bons exemplos citados pela autora de como os japoneses cuidam de si até ao fim da vida.

Quase todos os centenários entrevistados por Junko praticam algum tipo de ocupação mental: leem muitos jornais todos os dias, há quem invista na bolsa nipónica e há ainda uns cadernos de entretenimento mental incluem tarefas como o cálculo, a escrita kanji (de caracteres chineses) e copiar mantras budistas.

Quanto ao exercício físico, na atividade dos japoneses destaca-se a “radiocalistenia”, uma rotina quase nacional desde 1928, transmitida pela rádio e pela televisão. A calistenia está pensada para miúdos e graúdos e consiste em 13 movimentos, em duas versões.

[vídeos sobre calistenia]

Outro tipo de atividade, como a pesca ou a agricultura, também mantêm os japoneses mais idosos ativos.  Também o golf, praticado por vários idosos até perto dos 100 anos, chegou ao Japão na forma de “Mallet Golf”, onde são usados tacos de criquete ao invés dos tradicionais tacos de golf.

Check up mensal para trabalhar até ao fim da vida

“Soube de um caso de um médico que exerceu a profissão até uns dia antes de morrer, e estava lúcido”, conta Junko.

Viver muitos anos significa que há quem trabalhe por muito mais tempo também. “Alguns centenários continuam a exercer a sua profissão. (…) A maioria afirma que o trabalho é o motor da sua vida e deu-lhes um sentido para continuar a viver”.

Segundo uma investigação da Japan Health Promotion Fitness Foundation, a ocupação a que se dedicaram grande parte dos centenários é a agricultura, o cultivo e a exploração dos terrenos — daí que o façam até tão tarde. A segunda grande ocupação são os trabalhos em empresas ou na função pública.

Shigeaki Hinohara é o centenário mais famoso do Japão por ser também um médico ainda ativo com 104 anos. Foi o único a que Junko não conseguiu chegar. Além de médico, Hinohara é o diretor honorário de um hospital geral em Tóquio, dá conferências por todo o país e por vezes também no estrangeiro.

Outro exemplo dado pela escritora é o de Tsuneko Sasamoto, de 101 anos, a primeira fotojornalista do Japão, que ainda hoje trabalha. Cobriu os eventos mais importantes no país nas últimas décadas e testemunhou acontecimentos que se tornaram símbolos do Japão há uns anos, como foi o caso da greve dos mineiros de carvão ou os movimentos contra o Tratado de Segurança com os Estados Unidos, nos anos de 1960.

Muitos dos entrevistados disseram a Junko Takahashi que não têm problema nenhum de saúde, o que lhes permite continuar a trabalhar. No entanto, é natural que a sua capacidade física, com o passar dos anos tenha diminuído e tenha eventualmente surgido algum problema de saúde mais sério. Por isso, hoje em dia os japoneses fazem todos os meses um checkup e sempre que sentem alguma coisa menos boa, seja o que for, vão ao médico.

Antigamente pensava-se que para ultrapassar os 100 anos a qualidade de vida desse tempo dependia das doenças, do colesterol ou da glicemia. Mas estudos mais recentes dão conta de que ter os níveis de nutrição e a cabeça são mais importantes do que isso. A contribuir para esta longevidade japonesa entram também a melhoria nas condições de higiene, os progressos na medicina, e a própria maneira de ser dos mais velhos.

“A personalidade é o único campo onde há algumas semelhanças entre todos os centenários. Algumas das conclusões dos gerentólogos mostram que o nível de abertura às experiências entre os centenários de ambos os sexos e a conscienciosidade têm peso na longevidade”.

Desastres naturais e guerras? No Japão estão habituados

Desde pequenos que os japoneses sabem o que têm de fazer em situações de emergência, como é o caso dos tsunamis, terramotos, tempestades”, refere Junko. Mas a parte mais importante de lidar com estas intempéries é aceitar. “Eles aceitam o que acontece porque acreditam que é assim que tem de acontecer, e fazem o que podem para ultrapassar a situação”.

Em março de 2011, o Japão sofreu um dos mais fortes sismos de que há memória, de 9,0 na escala de Richter, e seguiu-se um tsunami que matou mais de 18 mil pessoas e desencadeou reações na central nuclear de Fukushima. Mas estas situações são mais frequentes do que se imagina. Nos últimos 100 anos foram vários os sismos, outras catástrofes naturais e conflitos que assolaram esta ilha no pacífico: em 1923, o grande Terramoto de Kanto (de 7,9 na escala de Richter) vitimou perto de 150 mil pessoas, e em 2011 , viveu-se um cenário semelhante: um terramoto no norte do Japão fez 58 mortos e mais de 1000 feridos.

Em agosto de 1945, o Japão também sofreu as consequências das bombas atómicas lançadas sobre Hiroxima e Nagasáqui. Foram os dois primeiros e últimos ataques nucleares contra humanos e todo o povo japonês viveu as suas consequências, poucas semanas antes do fim da segunda guerra mundial.

Estas situações foram vividas e enfrentadas por aqueles que são hoje os centenários japoneses. Muitos deles passaram fome, ou viram-se pelo menos, privados de alguns alimentos, foram militares, combateram nos conflitos em que o Japão se envolveu e muitos tiveram de fugir com as famílias. Mesmo assim, os protagonistas do livro de Junko Takahashi dizem não pensar no fim das suas vidas.

“A única dor de viver muito tempo é termos de nos despedir de muita gente”, disse uma das entrevistadas, Yone Koishihara, a Junko. “Sinto que nunca morrerei porque a morte é parte da vida”, disse Tomotaro Aikawa.

Junko demorou dois anos a escrever o livro. Sabe que há quem ache que o segredo para uma vida longa está no ADN, mas não concorda. O mais curioso, para a escritora, é que é difícil encontrar coisas em comum entre os vários centenários. “Cada um tem o seu jeito, a sua maneira de viver. E todas vivem bem”, conclui Junko.

Sem tentar prever o futuro, Junko acha que o que vai acontecer daqui para a frente é que” no Japão o número de centenários vai continuar a aumentar, mas a questão mais importante é outra: vão viver muitos anos e bem, mental e fisicamente”.