O ex-primeiro-ministro de Cabo Verde José Maria Neves mostrou-se hoje preocupado com a tendência de entrega de setores estratégicos do país, como o transporte aéreo, a empresas estrangeiras, alertando para os riscos do “neoliberalismo desenfreado”.

“Para um país pequeno, frágil como Cabo Verde há determinadas questões que devem ser mais ponderadas. Em Cabo Verde, o neoliberalismo desenfreado não leva a bons resultados. Temos é de ter o Estado suficiente e necessário para catalisar o processo global de desenvolvimento”, defendeu José Maria Neves.

Em entrevista à agência Lusa, a propósito do primeiro aniversário da Fundação com o seu nome, o ex-primeiro-ministro questiona algumas das medidas tomadas pelo atual Executivo do Movimento para a Democracia (MpD), considerando que “mereceriam mais ponderação, consenso e transparência”. Para José Maria Neves, o caso da reestruturação da empresa pública de transportes aéreos (TACV) é paradigmático da falta “cautelas redobradas” na gestão do património público.

O Governo cabo-verdiano tem em curso a reestruturação da TACV com vista à sua privatização, tendo fechado a operação dos voos entre ilhas, que entregou à Binter Cabo Verde, e assinado um contrato de gestão para a operação internacional com a empresa da Islândia Icelandair, que deverá ser o parceiro para a privatização. José Maria Neves admite que qualquer que fosse o Governo saído das eleições de 2016, a situação da empresa, que acumula mais de 100 milhões de euros de passivo, era insustentável e teria de ser reestruturada.

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Considerou, no entanto, “um erro estratégico de fundo” a entrega do mercado doméstico e regional à Binter CV, detida pela Binter Canárias, considerando que acabou com a vantagem competitiva de Cabo Verde relativamente ao mercado da Comunidade de Estados da África Ocidental (CEDEAO).

“A grande vantagem competitiva de Cabo Verde em relação as Canárias era o facto de sermos membros da CEDEAO. A estratégia de Espanha em transformar as Canárias numa plataforma de negócios na região africana é a mesma estratégia de Cabo Verde. A grande questão estratégica das Canárias era poder estabelecer uma ligação com a região. A TACV já tinha a ligação com Dacar (Senegal) e com Bissau (Guiné-Bissau), podia fazer esses voos regionais que eram estratégicos para Cabo Verde”, lembrou. Mas, prosseguiu Neves, “logo à primeira, este Governo desestruturou a TACV nacional e entregou os voos entre as ilhas e regionais à Binter, que claramente vem aqui para implementar a estratégia das Canárias, eliminado a vantagem comparativa que Cabo Verde tinha”.

José Maria Neves adiantou que o cenário de separação das operações nacional e internacional da TACV já “estava sobre a mesa” com o seu Governo e que só não avançou por o processo ter ficado concluído num ano pré-eleitoral “O que não estava sobre a mesa era a extinção da TACV nacional e a sua entrega em regime de monopólio a outra empresa. Não estava sobre a mesa também a ideia peregrina de passar a base dos TACV para ilha do Sal, abandonando os outros aeroportos internacionais”, disse.

Para Neves, a ideia do “hub” do Sal fazia sentido quando não existiam os restantes aeroportos internacionais. Com quatro aeroportos internacionais, o ex-primeiro-ministro considera que a ideia de “hub” deve ser aplicada a todo o país. “Devíamos era trabalhar para que um número cada vez maior de pessoas viesse a cabo verde, para turismo, para fazer transito, usando qualquer um dos quatro aeroportos internacionais e nunca a TACV devia sair do mercado da diáspora”, disse.

Além dos transportes aéreos, o Executivo cabo-verdiano tem em curso um concurso internacional para a concessão do transporte marítimo entre ilhas, e prevê entregar também a privados a gestão dos porto e aeroportos, bem como privatizar a empresa de eletricidade, entre outras companhias públicas.

Ex-PM acusa: há sinais de degenerescência da figura do PM cabo-verdiano

José Maria Neves considerou ainda “bastante incaracterística” a situação política em Cabo Verde, com um Governo sem norte, a crescente ingerência do chefe de Estado e uma quase ausência da oposição.

Estamos a ter alguns sinais preocupantes que levam a uma degenerescência da figura do primeiro-ministro no sistema de Governo. Há um espaço muito pantanoso e incaracterístico nas relações entre o Governo e o Presidente da República. Há cada vez mais uma interferência do Presidente da República na governação do país”, defendeu José Maria Neves em entrevista à agência Lusa a propósito do primeiro aniversário da Fundação com o seu nome.

Naquela que é a sua primeira grande entrevista depois de ter deixado a liderança do Governo do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), em abril de 2016, José Maria Neves assinalou que se “percebe claramente um recuo” do primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva, perante “um avanço” do Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, e o protagonismo do vice-primeiro-ministro e ministro das Finanças, Olavo Correia.

Como exemplo, apontou o protagonismo de Jorge Carlos Fonseca na liderança das delegações às cimeiras da Comunidade de Estados da África Ocidental (CEDEAO), considerando que a recente derrota da candidatura de Cabo Verde à presidência da organização é tanto do Governo como do Presidente.

“O árbitro não pode correr o risco de estar a perder jogos. O árbitro tem de arbitrar o jogo. Há uma cada vez maior ingerência nos assuntos do Governo. Cada vez menos árbitro e cada vez mais parte do jogo a favor do Governo”, disse.

Relativamente à prestação do executivo do Movimento para a Democracia (MpD), que sucedeu aos 15 anos dos seus governos, José Maria Neves, que não foi candidato à reeleição, considerou que, dois anos depois da entrada em funções, continua sem norte: “Está à procura do norte e falta-lhe uma bússola. Entre a campanha eleitoral e a assunção do Governo terão perdido os instrumentos de navegação. Não se trata de navegação à vista, nem no alto mar, trata-se de navegação à deriva”.

Reconheceu um maior crescimento atual da economia quando comparado com a última legislatura do seu governo, que considerou ter sido penalizado pela crise internacional, mas reclama parte dos louros da retoma económica.

“Quando este Governo assume que já há uma retoma da economia tanto no último trimestre de 2015 como no primeiro de 2016, e não há [atualmente] um crescimento muito superior ao ritmo de crescimento iniciado nessa altura. Houvesse outras medidas macroeconómicas hoje e a economia estaria a crescer a um nível mais elevado tendo em conta as condições que este Governo herdou”, disse.

José Maria Neves lamentou que estejam a ser “desaproveitados” alguns dos seus projetos emblemáticos como as barragens, o programa de habitação social “Casa para todos” ou as políticas para o setor do agronegócio. Considerou, por outro lado, que as medidas anunciadas por este Governo já estavam tomadas e com instituições a funcionar. “Muda-se o nome das instituições, faz-se um conjunto de discursos e de jogos sem que se vá ao essencial das questões”, afirmou.

Para José Maria Neves, com o Governo a completar dois anos de mandato este é o momento de mudar a tónica da discussão. “Neste momento, o debate não pode ser a comparação deste Governo com o passado. Temos de começar a discutir as políticas deste Governo — e ainda não há nada de novo para discutir –, e as políticas deste Governo com o futuro”, frisou.

Questionado sobre o papel da Oposição e do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV), liderado por Janira Hoppfer Almada desde 2014, o ex-presidente do partido afirma não estar a fazer militância ativa e desconhecer as propostas para “o momento político que se está a viver”.

Ainda assim, não esconde a “angústia” e “frustração” pela forma como está a ser feito o debate político em Cabo Verde: “O jogo político está bastante incaracterístico em Cabo Verde e em alguns momentos estranha-me a ausência do maior partido da oposição no debate ou na chamada de atenção em relação a algumas questões políticas importantes do país”. Rejeitou, no entanto, qualquer hipótese de vir a protagonizar uma candidatura à liderança partidária.

Depois de quase dois anos em silêncio, pontuado por algumas intervenções através da sua página pessoal na rede social Facebook, José Maria Neves diz ter tido oportunidade de refletir sobre os seus 15 anos de governação.

“Dezoito anos depois é muito fácil dizer que em 2001 faria diferente. Claro, com as informações e os dados que tenho hoje. Se voltasse ao governo hoje há muitas coisas que faria diferente, mas infelizmente no governo não há ensaio e depois representação, vamos ensaiado e realizando simultaneamente e vão-se fazendo coisas boas e outras menos boas”, disse.