É conhecido em Espanha como apresentador de “reality shows” — incluindo “Hermano Mayor”, semelhante ao formato televisivo que os portugueses conhecem como “Supernanny”. Na década de 90, fez parte da seleção espanhola de pólo aquático e tornou-se um herói: medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Atlanta 1996 e campeão do mundo em Perth em 1998. Os momentos de glória foram acompanhados pelo consumo excessivo de drogas, o que o levou à ruína quando tinha 34 anos. Hoje, com 49, dá palestras de motivação em empresas e faz aconselhamento de jovens na área das dependências. Foi um dos convidados da conferência “O Que de Verdade Importa”, especialmente dirigida a adolescentes e cuja quinta edição em Lisboa decorreu nesta terça-feira, no Campo Pequeno. Falou com o Observador e contou a história de que é protagonista.

Foi desportista de alta competição ao mesmo tempo que abusava de álcool e drogas. Como é que geria as duas situações?
A dependência tem sempre uma fase a que se chama “silêncio clínico”. Era dependente desde muito novo, tinha necessidade de beber álcool, mas durante algum tempo consegui gerir essa necessidade e só consumia aos fins-de-semana. Era capaz de parar um mês ou dois, quando tinha um campeonato, por exemplo. Mas esse tempo de abstinência foi-se tornando cada vez mais curto. Fui capaz de controlar o consumo durante anos, até 1998, quando tinha 30 anos. Aí o consumo passou a ser diário. Ao fim de 10 ou 15 anos, a doença acabou por se manifestar.

Os seus colegas de equipa estavam a par? Também faziam consumos abusivos?
A nossa equipa era muito profissional, éramos muitos amigos uns dos outros, passávamos muitas horas a fazer treinos duros e quando saíamos gostávamos de celebrar e de beber. Ou seja, não víamos que houvesse algum o problema. Chegava o dia do jogo e ganhávamos. Que problema é que poderia existir? Nenhum. Estávamos juntos, treinávamos como touros durante um mês e depois ganhávamos. Tínhamos de celebrar, claro. A sociedade convida-nos a isso. Quem ganha um campeonato de Fórmula 1 recebe uma garrafa gigante de champanhe. O álcool é socialmente aceite e a celebração está associada ao álcool.

Onde começou a beber?
Em bares. Saíamos para jantar e depois íamos para os bares, até às três da manhã, e depois continuávamos nas discotecas. Comecei a beber aos 14 e a entrar em discotecas aos 17, 18 anos.

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Em que momento considerou que o álcool se tinha tornado um problema?
Aos 34 anos, quando perdi o meu trabalho na seleção espanhola de pólo aquático. Percebi que me tinha convertido num alcoólico. Nessa altura, entrei em ruína económica e perdi muitos bens, incluindo a casa. Também perdi as mulheres que me rodeavam: tinha uma filha de uma ex-mulher e vivia com uma segunda mulher com que tinha tido outra filha. Perdi tudo.

Afastaram-se?
Claro. Mas tive a sorte de ter uma mãe que me apoiou. Sou madrileno e naquela época vivia em Barcelona. A minha mãe foi ter comigo para me resgatar. Comprou uma casa em Barcelona e acompanhou-me durante toda a recuperação. Se não tem sido assim, teria enfrentado tudo sozinho.

Fez apenas um processo de recuperação?
Apenas um. Foi à primeira.

Além do álcool também consumia drogas?
É curiosa a distinção que faz na pergunta. Quando falo com jovens, dou-lhes a definição de droga que está estabelecida pela Organização Mundial da Saúde: droga é toda a substância que, uma vez ingerida, pode alterar uma ou várias funções do organismo, principalmente a toma de decisões e o comportamento. À luz desta definição, o álcool é uma droga, embora legal. No meu caso, comecei com o álcool e depois passei a fumar canábis. Mais tarde, para equilibrar o efeito do álcool, comecei a consumir cocaína. Foi sempre em contexto noturno, nunca tomei nada a pensar nos treinos ou para aumentar o rendimento como desportista. Saía à noite e consumia. Ainda assim, poderia ter acusado doping, porque quando consumia cocaína ao sábado ainda teria resíduos na segunda-feira.

Como foi a relação com a família na infância e na adolescência?
Tive uma família normal e estruturada até aos meus 12 anos. Nessa altura, os meus pais divorciaram-se. Até então, em Espanha, o divórcio era ilegal, mas em 1980 tornou-se possível, pouco depois da transição para a democracia. Eu e as minhas irmãs passámos a viver com o meu pai, mas muitas vezes andava na rua, à solta, isto em Madrid. Tive pouco acompanhamento do meu pai, que precisava de trabalhar. Dos 12 aos 18, até ir para Barcelona, fiz muitos disparates. Rua, amigos…

Isso pode ser bom para o desenvolvimento de um jovem, ou não?
Teria sido bom se o meu pai tivesse estabelecido os limites. Descobri tudo sozinho. Tudo. Almoçava num restaurante onde pessoas mais velhas me ofereceram cerveja pela primeira vez. Não tinha consciência das implicações. O meu pai não podia estar comigo. Se tivesse estado, poderia ter dito que não, que aquilo não era bom para mim.

Começou a alargar os seus próprios limites?
Claro. Dizia a mim mesmo: “sou um bom desportista, não dependo do meu pai, ganho o meu dinheiro, ninguém pode interferir”. E durante esses anos da adolescência vivia cheio de raiva por não ter a minha mãe em casa. Os consumos eram uma forma de me evadir. Hoje tenho duas filhas [uma com 20 anos, outra com 17] e tive uma conversa muito séria com elas sobre álcool e drogas. Já passaram a fase mais problemática da adolescência, mas, mesmo em adultas, tudo pode mudar. Aos 25, um problema pode fazer-nos sair do caminho. Conheço casos assim, de pessoas com 25 ou 30 anos. Encontro-as num centro de recuperação em Barcelona, onde fazemos terapias de grupo para todos o tipo de dependências.

Foi o ambiente social e familiar que o levou às dependências ou a decisão foi sua?
Os peritos dizem-nos que há uma predisposição genética, mas nem todos se tornam dependentes ao entrarem em contacto com algumas substâncias. O contexto social ou as situações de pressão emocional não nos levam à dependência, o consumo de drogas é que nos leva à dependência. Não somos mais fracos, não temos problemas mentais – não sou doido, embora me comportasse como um doido quando consumia. Isto é, há fatores que nos levam ao consumo: um entorno social problemático, não saber lidar com a frustração… Bebo uma cerveja e um mês depois já preciso de duas, depois três, e por aí fora. Acabo por beber cada vez mais para conseguir encontrar a primeira sensação que tive ao beber apenas uma. É esse o problema: maior quantidade para encontrar a sensação inicial.

Hoje também se fala muito da dependência do jogo, dos telemóveis, da internet.
Se não controlo o consumo de álcool, também não terei controlo no consumo de haxixe ou de cocaína e também não terei controlo sobre o jogo. É um traço de personalidade. Não se pode tratar uma pessoa dizendo-lhe que deve deixar a cocaína, mas que pode continuar a consumir álcool. Não resulta. Por isso é que agora também falamos da dependência de tecnologias, das máquinas, dos telemóveis. São drogas não químicas, não entram no cérebro, mas produzem processos idênticos aos que resultam da ingestão de drogas químicas. Podemos ter alguém que dependa apenas do telemóvel, mas a maioria junta álcool e cocaína, ou canábis e álcool, ou póquer online e álcool. Há sempre duas ou três situações numa mesma pessoa.

Defende mais restrições à venda de álcool?
Não, mas defendo que as garrafas devem conter um aviso: “Este produto pode provocar dependência”. É o que já se faz na Europa com os cigarros. O álcool é uma droga legal, vende-se nas lojas, o consumidor deve ser avisado. A indústria do álcool não quer, diz que o problema está na pessoa e não na substância, diz que o consumo moderado não causa problemas. É mentira.

Na publicidade ao álcool aparece a frase “seja responsável, beba com moderação”. Não é suficiente?
Para evitar o alcoolismo, não. Onde está a responsabilidade e a moderação num jovem de 14 anos?

Um aviso como aquele que defende não despertaria ainda mais a curiosidade dos adolescentes?
Os jovens já hoje têm curiosidade pelo álcool, não me parece que passassem a ter mais, só por causa de um aviso nas garrafas. Não podemos evitar o consumo e a experimentação. O que aconteceria, sim, é que o jovem, ao beber cerveja ou vinho ou vodka, teria mais informação. Uma parte da bebida é etanol, o etanol é uma droga, mas nenhum jovem pensa no álcool como uma droga. Os miúdos olham para o álcool como algo divertido e necessário para dançar, para socializar ou para uma conquista romântica, porque desinibe e diminui o sentido do ridículo.

Concorda com a distinção entre “drogas leves” e “drogas duras”?
Não, apenas distingo entre drogas legais e ilegais. As drogas legais são o tabaco, os medicamentos a que chamamos psicofármacos e o álcool.

Já se fala do açúcar como droga. Qual é a sua opinião?
Talvez seja a droga do século XXI, sim. Hoje tudo leva açúcar. Ainda assim, é uma substância que não altera nem modifica os neurónios. Posso estar uma semana sem açúcar. Se calhar, terei apenas dores de cabeça.

A legalização do consumo e do cultivo de canábis para uso individual é uma boa medida?
O facto de o álcool ser legal não evita que haja alcoólicos. Quando legalizamos a canábis estamos a baixar a consciência de risco e muitos jovens podem começar a usá-la ainda mais cedo. A associação que fazem é esta: se é legal, não é prejudicial. Mas a verdade é que é uma droga, porque altera e modifica o comportamento. Se alguns dos impostos que pagamos na compra de uma droga legal forem usados para tratamentos a pessoas que desenvolvem problemas de consumo, então legalize-se a canábis. Nestas condições, sim.

Veio a Lisboa para falar sobre coragem e superação, perante uma plateia de adolescentes. É este o público que mais lhe interessa?
Sim, porque o consumo de álcool e drogas começa nestas idades. Quem começa a consumir antes dos 21 tem maior risco de ficar dependente, porque está numa idade em que as agressões ao cérebro tem maior impacto. A minha mensagem é: protejam-se, vivam a adolescência de outra forma. A melhor fase da vida pode ser a adolescência e não precisa de ser vivida com desolação. Era assim que eu me sentia.