Faltavam seis minutos para o fim do debate quinzenal com o primeiro-ministro. Já tinham falado Fernando Negrão, Catarina Martins, Nuno Magalhães e Jerónimo de Sousa. Faltavam o PEV e o PAN e, ao longo de mais de 75 minutos, ninguém pegou naquele que era verdadeiramente o tema do dia: o acordo entre o Governo e o PSD em matéria de fundos comunitários e descentralização de competências para as autarquias, que António Costa e Rui Rio iam assinar dentro de poucas horas.

Teve de ser Heloísa Apolónia a puxar o assunto. “O que significa”, afinal, esse entendimento de Bloco Central, quis saber a deputada d’Os Verdes?

Alguma saudade que lhe bateu ou uma tentativa ingénua de branquear as responsabilidades que o PSD teve na tragédia” que o país viveu nos últimos anos?”, perguntou diretamente ao primeiro-ministro.

Costa não perdeu tempo e nos primeiros segundos da sua resposta garantiu que não eram “nem saudades nem vocação para o Omo ou para lavar mais branco”, aquilo que o levava a fechar o primeiro grande acordo do Governo com o PSD. A abertura para discutir era geral, aplicava-se a “todos” os partidos sem exceção, sendo certo que “há matérias estruturais para o país, como a reforma do Estado e a descentralização, que requerem um acordo o mais alargado possível”.

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Mas também é certo para o primeiro-ministro que as águas, para o Governo, não se misturam:

Temos sabido muito bem o que são soluções de governo – e quanto a essas estamos entendidos, encontrámos uma boa solução de governo – e o que são outros acordos que devem ser estabelecidos sem a exclusão de ninguém”, disse António Costa.

O debate desta quarta-feira foi isto: uma mistura de mensagens tranquilizadoras do primeiro-ministro para os seus parceiros no Parlamento, uma postura de dentes cerrados de BE, PCP, PEV e também do CDS e um PSD que, apesar do entendimento inédito na legislatura, não facilitou a tarefa ao chefe do Governo. Sem que a expressão maldita — acordo Governo/PSD — fosse pronunciada durante quase todo o debate, ela andou a pairar por ali durante todo o tempo.

Acordo Governo/PSD. “Um aperto de mão vale mais do que muitas assinaturas”, diz Costa

Governo mais papista que Bruxelas, acusa a esquerda

As perplexidades do BE. Catarina Martins levava duas “perplexidades” para o frente-a-frente com o primeiro-ministro: a primeira, como é que o Governo encontrou quase 800 milhões de euros para emprestar ao Novo Banco e não consegue encontrar 90 milhões para as obras de que precisa o serviço de pediatria do Hospital de São João; a segunda, o que leva o executivo de António Costa e Mário Centeno a querer “ir além das metas acordadas com Bruxelas” quando os serviços públicos estão “muito aquém da resposta a dar ao país” e quando o próprio Governo admite que isso é verdade? A fórmula usada pelo PCP foi diferente — o “sucesso” das contas públicas como “mote” para o apertar do cinto —, mas a esquerda parecia estar de estratégia alinhada. A missão era pressionar o Governo.

Mudam-se os tempos, ficam as críticas. “Não temos nenhuma obsessão pelo défice, não é uma questão de esquerda ou direita, é de boa governação. O ponto de partida a 1 de janeiro é melhor do que o que prevíamos inicialmente, e por isso o ponto de chegada vai ser melhor, isto é motivo para nos congratularmos”, respondeu António Costa a Catarina Martins quando a coordenadora do Bloco de Esquerda questionou o primeiro-ministro sobre a inclusão do empréstimo ao Novo Banco nas contas do défice. “É uma regra do INE”, justificou Costa.

Orçamento cumpria com Bruxelas. Depois, discutiram-se “folgas” orçamentais e o que fazer com elas. “Folga não é o dinheiro que temos a menos, é o dinheiro que não vamos alocar aos juros da dívida e vamos poder alocar ao investimento”, explicou o primeiro-ministro à líder do BE. Catarina Martins não estava satisfeita e insistiu: “Nenhum de nós divergiu quando negociámos o Orçamento do Estado para 2018” nem nenhuma das partes — BE e Governo — considerou que o défice previsto era “despesista ou perigoso para o país”. Essa “foi uma opção pensada” e, por isso, o BE não entende agora “porque tem de ser revisto” uma vez que “foi considerado as metas que o Governo já tinha negociado com Bruxelas”.

O fantasma do passado. Havendo folga face ao défice com que Portugal se comprometeu junto das instituições europeias, o BE defende que essa margem devia ser aproveitada para aumentar salários e pensões e investir em serviços públicos. Não fazê-lo é interpretado com apreensão pelos bloquistas. “O crescimento e o emprego são o único caminho para a consolidação orçamental que venha para ficar” e “regressar ao passado é não compreender como foi feito este caminho”, avisa Catarina Martins.

Acordo era para defender o Estado. A insistência não ficou por ali. Até porque, na intervenção seguinte, a bloquista teve de lembrar Costa daquilo que foram as negociações entre BE e PS para fechar um entendimento parlamentar a uma legislatura. Um diálogo que se concretizou num acordo à volta da ideia de que era preciso “defender as funções essenciais do Estado e os serviços púbicos, destacando como prioritário o SNS”. E o que há, agora? “Portugal é dos países da UE com menos investimento na saúde em percentagem do PIB, o que tem menos habitação pública, não precisamos de anunciar que temos vontade de fazer melhor. Se a economia cresce e temos mais capacidade então temos mesmo de fazer melhor”, sublinhou coordenadora do BE.

A “justiça social” do PCP. A conversa não ficou mais ligeira quando chegou a vez do PCP. “Justiça social” era a palavra-chave da intervenção, era disso que Jerónimo de Sousa queria falar. Saúde, Transportes, Cultura, as longas carreiras contributivas cuja resolução o Governo empurrou para 2019 (quando tinha prometido uma solução no início deste ano). “Até quando se continuará a adiar” o reforço do investimento nos serviços públicos e no aumento de salários e pensões, perguntou Jerónimo.

Sucesso também é desculpa para apertos. Antes — no Governo de Passos e Portas, entenda-se —, era o argumento dos “sacrifícios” a justificar a falta de investimento; “agora é o sucesso que serve de mote” ao Governo, acusou, antes de lembrar António Costa de que “foi a cedência de sucessivos governos” aos ditames de Bruxelas “que levou à desgraça” do país. “Não são os compromissos com o PCP que aqui pesam, são os compromissos com os portugueses” que estão em jogo, assinalou o líder comunista. Depois, falou Heloísa Apolónia, que cortou caminho e lançou a pergunta ao primeiro-ministro. “Saudade”? “Branqueamento?”. Costa jurou que não.

Bons resultados também são mérito da esquerda, elogia Costa

Missão: controlar danos nos aliados. Para o primeiro-ministro, o debate mais parecia uma operação de controlo de danos, de cada vez que tinha de responder aos seus parceiros parlamentares. Costa não “confunde” o acordo com o PSD com aquilo que é solução governativa de longa distância. “Temos distinguido muito bem as soluções de Governo, e quanto a essas estamos entendidos que encontrámos uma boa solução de Governo que tem dado bons resultados e que merece estabilidade”, salvaguardou. Foi sempre assim quando António Costa falava à esquerda — elogios, garantias de fidelidade e promessas de amor duradouro. Mesmo o acordo “essencial” que Costa e Rio conseguiram fechar tem de passar pelo crivo de todos os partidos, lembrou o primeiro-ministro. Uma mensagem simbólica, para dizer que, também aí, o BE e o PCP podiam ser voz ativa.

Sucesso não dependeu de cortes. Logo na sua intervenção inicial, Costa revisitou o percurso do Governo e as conquistas que PS, BE, PCP e PEV foram somando: entre o crescimento económico acima das perspetivas, o aumento do emprego, reposição de rendimentos, aumentos de salários e pensões, redução da dívida pública, investimento público e por aí adiante. Foram nove minutos a somar dados que culminaram numa conclusão: a de que “na base destes resultados no défice e na dívida pública não está qualquer corte, nem a falta a qualquer compromisso assumido nesta Assembleia”.

O BE ajudou ao sucesso. O plano de apaziguamento à esquerda também olha para futuro. “Nenhuma medida do Orçamento do Estado de 2018 será posta em causa para cumprir défice” e “o esforço em 2018 e 2019” até será “suavizado” face àquilo que já se conquistou no ano passado e o investimento público também vai aumentar este ano (36% face a 2017), assegurou o primeiro-ministro. O elogio estava a chegar: “A boa execução do ano passado não resultou do incumprimento mas de boas políticas que executamos em conjunto com o BE”, sublinhou.

PCP também deu uma ajuda. Os comunistas teriam direito, mais à frente, a ouvir o mesmo. “Diz [Jerónimo de Sousa] que invocamos o sucesso para controlar as contas e evitar fazer mais, mas não. Invocamos o sucesso porque tivemos sucesso. E o sucesso é também do PCP, dos Verdes, do Bloco de Esquerda. Diz que ainda não chega, eu estou de acordo. Por isso ainda cá estamos”, disse Costa ao secretário-geral do PCP, antes de fazer uma metáfora com o futebol. “Sabemos que os jogos têm duas partes: ainda temos uma segunda parte desta legislatura para levar até ao fim.”

Acordo com Rio em São Bento. Negrão suave no Parlamento?

PSD levou rosas com espinhos ao quinzenal. O facto de, dali a poucas horas, o presidente do PSD ter encontro marcado com António Costa para assinar dois acordos importantes para o futuro do país não resultou num PSD suave para o primeiro-ministro no confronto em plenário. “Nem tudo são rosas”, disse Fernando Negrão assim que fez um elogio ao défice conseguido no ano passado. O Governo “bateu o recorde de cativações” em 2017, protagonizou o “menor investimento público das últimas décadas” em Portugal e a carga fiscal foi a mais elevada dos últimos 23 anos. “Acha sério continuar a dizer aos portugueses que já não vivemos em austeridade?”, atirou o líder da bancada parlamentar.

Governo parado dois anos e meio. E, numa semana em que foi notícia a situação da ala pediátrica do Hospital de São João, o Porto, o PSD pôs o foco na Saúde. “Quando começam as obras? Quando se prevê que acabem? Quem as paga? Dinheiros públicos ou de mecenas?”, atirou de rajada o líder da bancada social-democrata, num dos debates em que mais apertou o cerco ao primeiro-ministro. Mesmo considerando “inútil” uma discussão que ele próprio tinha lançado e que o obrigou rapidamente a corrigir a mão, acusando o Governo de falhar na sua “responsabilidade” por nada ter feito “em dois anos e meio” por aquela unidade de saúde pública.

PSD pede crédito ao relógio do Governo. O tempo do PSD já tinha acabado mas o quadro mostrava cerca de dois minutos e meio para o Governo, no pingue-pongue com Negrão. O líder pediu 30 segundos emprestados ao primeiro-ministro para uma última pergunta, Costa acedeu. “Também no tempo somos bons a gerir”, gracejou o primeiro-ministro. Era mais uma pergunta sobre serviços de saúde. “Assumimos as nossas responsabilidades, lamento que não assumam as vossas”, atirou Costa a fechar.

A austeridade que não desaparece. A fechar o frente-a-frente à direita, Nuno Magalhães acusou o Governo de não escapar à austeridade. “Apenas virou o disco, porque a música é exatamente a mesma”, disse o líder da bancada, que substitui Assunção Cristas, ausente por motivos pessoais. Magalhães tentou por diversas vezes obter a Costa uma resposta a “quando” vai Mário Centeno “cumprir a promessa” de reduzir a carga fiscal.

Pessoas têm mais dinheiro. “Podemos virar o disco e tocar o mesmo, mas faço-lhe uma sugestão: circule pelas ruas, nem precisa de ir muito longe, pode ficar pelos corredores do Parlamento, e pergunte às pessoas que vá encontrar pelo caminho se têm ou não mais dinheiro do que tinham há dois anos e meio”, rematou o primeiro-ministro.