A Casa da Música, no Porto, recebe esta sexta-feira o espetáculo “Tito — ensaio sobre o poder”, inspirado na primeira tragédia de William Shakespeare e protagonizado pelo ator Albano Jerónimo e pelo Crinabel Teatro.

“Tito – ensaio sobre o poder” é o último de três espetáculos do grupo Crinabel, composto por pessoas com necessidades especiais, sobre o poder, tendo o primeiro, “Guia prático para artistas ocupados”, sido encenado por Marco Paiva e apresentado na Casa da Música em abril de 2017, e o segundo, “Um libreto para ficarem em casa, seus anormais”, encenado por Albano Jerónimo com estreia em junho do mesmo ano, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa.

“Tínhamos vontade, há algum tempo, de fazer um espetáculo sobre o poder e o que é exercer autoridade sobre uma massa de gente. Curiosamente, os dois espetáculos que fizemos anteriormente, propunham essa ideia de como conseguimos manipular o poder e achamos pertinente fechar um ciclo”, explicou à agência Lusa o encenador, Marco Paiva.

Marco Paiva contou que o grupo foi à procura de um texto clássico que falasse de poder e chegou a “Tito Andrónico”, a primeira tragédia de Shakespeare, “em que a figura do Tito tem um poder exacerbado, pois decide quem mata e quem morre”.

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Para desconstruir o texto de Shakespeare, o mesmo foi entregue à dramaturga do Teatro Nacional 21, Cláudia Lucas Chéu, disse Marco Paiva, que realçou a vontade de “criar uma espécie de triângulo com três ideias distintas”: a relação com os espetáculos anteriores, o percurso do Crinabel Teatro e a possibilidade de desenvolvimento numa linguagem mais contemporânea da ideia de poder.

“Isto é, como é que nós num texto clássico conseguimos reviver figuras que hoje em dia têm um poder tão ditatorial e totalitário como tem, por exemplo, o Tito e, por isso, é que recorremos a figuras como o Trump”, salientou o encenador.

Durante o espetáculo, é apresentada uma lista de nomes políticos que vão sendo mencionados, desde Donald Trump a Salazar, José Sócrates, Pedro Passos Coelho, Paulo Portas e Cavaco Silva.

Sobre estes últimos, Marco Paiva considerou que “fazem parte de uma lógica totalitária diferente da do Salazar, mas que continua a existir. Continua a existir um sistema que de certa maneira manipula”, disse.

Por sua vez, o ator Albano Jerónimo que aparece em palco primeiramente como a personagem da peça “Um libreto para ficarem em casa, seus anormais” e posteriormente como pugilista para representar o herói americano, figura forte nacionalista, que consegue ganhar e que usa a luta e a guerra como forma de conquista, considera “uma inspiração e aprendizagem” trabalhar com o Crinabel Teatro.

“São atores inacreditáveis a nível de resistência, trabalho e entrega”, disse o ator à Lusa, antes de acrescentar que o teatro deve servir para “aproximar pessoas e fazer”, bem como para “usar a arma da comunicação para fazer chegar mais longe pequenas sectarizações sociais”.

Sobre “Tito — ensaio sobre o poder” o ator disse que é usada a violência “como amiga da abertura de mentalidades, como uma provocação permanente associada ao facto de imprimir no espectador um raciocínio sobre aquilo que vê”.

Albano Jerónimo sublinhou que “não há uma mensagem, há uma discussão aberta sobre o poder” e realçou a “crítica viva, obviamente à política” do espetáculo que tem “uma abordagem em cena mais direta de propósito, sobre o vírus do poder e como é que ele pode transformar o corpo e a mente”.

“O ‘Tito Andrónico’ do Shakespeare é uma matança, um rio de sangue e aqui pegamos nessa matança de poder, aniquilando esse poder. Parece que isto não acaba e nunca acaba, de facto, esta passagem do poder”, concluiu o ator que é também diretor do Teatro Nacional 21.

O encenador Marco Paiva reconheceu, contudo, que há “uma fragilidade” no Crinabel, uma vez que “o projeto não tem muita visibilidade”, devido à “dificuldade em inserir projetos como este num circuito maior do sistema de circulação artística” e revelou que foi esse o motivo que suscitou a vontade de colocar também dentro do espetáculo a história do grupo.

Marco Paiva descartou o objetivo de inclusão social, justificando que “a ideia da palavra inclusão pressupõe um patamar social ascendente” e que o objetivo “não é de inclusão, mas de discurso coletivo” já que “a sociedade não tem que incluir, mas sim dialogar” com as pessoas com necessidades especiais.

“Tito — ensaio sobre o poder” é uma coprodução do Crinabel Teatro, da Casa da Música e do Teatro Nacional 21 e conta com duas sessões, sendo a primeira hoje às 14:30 e a segunda às 19:30, ambas na sala 2 da instituição do Porto.

O espetáculo integra o programa inclusivo “Ao Alcance de Todos” que faz parte do Serviço Educativo da Casa da Música e cuja edição de 2018 teve início há cerca de um mês e é hoje encerrada com este trabalho inspirado na obra de Shakespeare.