Fernando Medeiros era estudante e vivia em pleno Quartier Latin, em Paris, quando começaram as manifestações e barricadas do maio de 68, um momento histórico em que viveu num “delírio coletivo a enterrar o velho mundo”.

Depois de uma adolescência em Moçambique e de ter iniciado a universidade em Portugal, Fernando foi para França em 1961, com 20 anos, porque “não queria ir para as matanças” das guerras coloniais. Em 1968, com 25 anos, viveu, em Paris, “uma experiência absolutamente empolgante” não só em termos da “perspetiva histórica” mas pelo “prazer de participar” nesse “movimento social de grande envergadura”.

“Aquilo foi uma explosão de criatividade absolutamente espetacular, impressionante. A gente estava numa certa forma de delírio coletivo a enterrar o velho mundo”, descreveu o então estudante em Sociologia e Psicologia. O “enterro festivo do velho mundo” custou a Fernando o seu Renault 4L que ardeu numa noite de barricadas, assim como “todos os carros que estavam nessa rua”, quando começaram as manifestações a pedir a libertação de estudantes já detidos.

Nessa noite, a rua Gay-Lussac, onde vivia, viu-se “descalçada” e as pedras serviram de arremesso contra as forças de ordem, numa “violência em crescendo”, na qual Fernando e os companheiros se viram obrigados a fugir para o seu apartamento, no prédio número 13 da Gay-Lussac que serviu de abrigo a dezenas de manifestantes.

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“Aquela rua foi literalmente, inteiramente desnudada. Eu fui lá para cima [quinto andar] até porque a coisa começou mesmo a degenerar. Fui para casa, mas não fui sozinho. Naquela rua, todas as casas serviram de abrigo. Só lá no meu pequeno apartamento éramos, pelo menos, uns vinte e tal”, recordou, acrescentando que no grupo havia um cineasta que filmou os confrontos a partir da sua varanda.

A partir daí, Fernando Medeiros participou “em praticamente todas as manifestações” e entrou num comité de ação de Glacière, no 13º bairro de Paris, que se reunia numa “espécie de assembleia-geral na universidade de Censier” e que “se transformou numa espécie de quarteirão-geral dessa perspetiva de luta de união estudantes-trabalhadores da contestação da ordem vigente”.

“No fundo, coordenavam-se lutas: apoios concretos a ocupações de fábricas, a ocupações de escolas, a iniciativas de criação de atividades lúdicas ou sociais, como creches e escolas alternativas. Aquilo era acompanhar os acontecimentos, estar ativos em matéria de mobilizações para manifestações e para contestações de toda a ordem e feitio”, descreveu.

O movimento também passava pela “libertação da palavra como se uma chapa de chumbo tivesse saltado” e, por isso, “o que ocupava mais tempo” eram as próprias relações sociais e “a descoberta de que havia imensas coisas por descobrir, por fazer, por averiguar”.

Fernando Medeiros ainda participou em reuniões de comités de “solidariedade para com as lutas de libertação nacional”, um meio que conhecia bem depois de ter frequentado a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, e de ter contactado com a União dos Estudantes Moçambicanos (UNEMO) em Paris.

Antes de 1968, o português foi cofundador da revista e grupo de reflexão Cadernos de Circunstância (1967-1970), andou em comités contra a guerra no Vietname, e esteve, em 1965, nas eleições da União de Estudantes Portugueses em França, numa lista em clara cisão com o Partido Comunista.

Depois de 68, “a ressaca foi forte” e voltar ao “quotidiano fastidioso não era possível porque havia que estar à altura dos acontecimentos”. Fernando Medeiros terminou, então, a licenciatura, foi recrutado pelo ensino universitário francês graças à abertura de concursos a estrangeiros (na sequência do maio de 68) e, em 1975, viveu “uma aventura neo-rural” com uma “tentativa de ocupar uma aldeia abandonada no sul de França com três casais amigos”.

“Essas utopias continuaram a trabalhar na sociedade, sobretudo na malta jovem, durante muito tempo”, concluiu o português que continua a viver em França e que, 50 anos depois, reitera que “o maio de 68 marcou profundamente esta sociedade”.