O Benfica ganhou um lugar especial no coração de Júlio César — ainda há pouco tempo, o guarda-redes brasileiro lembrou que foram os encarnados que o “abraçaram”, isto é, que o contrataram, depois dos sete golos que sofreu da Alemanha na meia-final do Mundial de Futebol de 2o14. A despedida, porém, tinha de ser no seu “Mengão”. O Flamengo foi o clube a que Júlio César chegou menino, com apenas 12 anos, e do qual saiu já homem, com 26, rumo ao Inter de Milão. Foi também o clube cuja camisola “O Imperador” (como o guarda-redes também era conhecido) envergou no adeus aos relvados, este sábado, num Maracanã lotado.

O jogo de despedida foi contra o América-MG e Júlio César terminou a última partida da carreira sem golos sofridos: o “Mengão” venceu 2-0. Foi quando o árbitro apitou que as emoções subiram de tons: Júlio César ajoelhou-se, agradeceu, emocionou-se. A bancada cantou por ele, aplaudiu-o, emocionou-se também ela. A despedida tinha mesmo de ser ali.

“Muitos amigos e parentes falaram que eu não poderia encerrar sem ser no Flamengo”, disse Júlio César numa entrevista recente, em que admitiu que, se não fosse o interesse do clube brasileiro, teria terminado carreira no Benfica. “Meu filho Cauê disse: ‘Pai, quero-te ver vestir a camisa do Flamengo uma vez.’ Isso pesa.” Depois do jogo de despedida, diria: “Às vezes, eu nem sei se mereço isso tudo. Queria agradecer quem veio prestigiar o Flamengo e o Julio Cesar. Valeu rapaziada!”

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Depois da primeira passagem [pelo Flamengo], eu disse que não voltaria, que não encerraria aqui. Até há pouco tempo, eu falei que não, que estava ciente da parceria com o Benfica. Pegaria mal com a instituição, tem que ser político. No começo eu afirmava [isso] porque passei por momentos complicados aqui. Todos sabem. O Flamengo nunca procurou e o Benfica veio, eu gostei e fui”, disse.

Os momentos complicados no Flamengo

Cinco campeonatos italianos, três Taça de Itália, uma Liga dos Campeões. Três campeonatos portugueses, duas Taça das Confederações, uma Copa América. Quatro campeonatos cariocas, quatro supertaças italianas, um Mundial de Clubes. A carreira de Júlio César esteve recheada de títulos mas tudo começou no “Mengão” — e com alguns problemas à mistura.

Com “personalidade forte”, que ele mesmo assume (“Não gosto de me arrepender pelo que não fiz. Só pelo que fiz e depois ver que foi errado e aprender. Melhor errar achando que está fazendo o certo do que se esconder e se omitir”, afirmou recentemente), Júlio César viveu alguns momentos mais complicados no clube do qual sai em apoteose. Chegou a ser ameaçado, discutiu com adeptos, revoltou-se em campo. Sobre esses desentendimentos também viria a falar à imprensa brasileira:

Eu não raciocinava. Eu era novo. Naquela altura adotei posição de liderança com outros companheiros, mas era cedo. Talvez aquelas turbulências da minha primeira passagem me fizeram um cara mais forte. Não é fácil jogar num clube que passa por dificuldade enorme em termos de estrutura e financeira e ter que ganhar o jogo e dar satisfação para a torcida. Para um moleque de 22 anos não é fácil.”

Os desentendimentos não fizeram diminuir a paixão, pelo contrário, era ela que os provocava. “Identifiquei-me tanto com a torcida do Flamengo porque é igual a marido e mulher. Briga, sai na porrada e depois está se amando. Era isso. A torcida invadia, eu ia lá, no aeroporto, chegando de viagem. Não é porque o cara acha que é mais Flamengo do que eu que ele vai lá botar o dedo na minha cara. É todo o mundo no mesmo barco”, comentava.

Inter, Benfica, a vida futura em Lisboa e a nova profissão: “empreendedor”

O percurso de Júlio César na Europa começou não no Inter de Milão, clube onde viveu o seu apogeu de carreira e onde conquistou os maiores títulos, mas no Chievo Verona, clube ao qual o Inter de Milão o emprestou. A decisão de rumar a Chievo foi aliás do guarda-redes: César podia ter optado por ficar mais seis meses no Flamengo e seguir depois para Milão, mas preferiu passar esse tempo a “ambientar-se” a Itália. Futebol é que não se viu: não somou qualquer minuto.

Para Júlio César , a época seguinte — 2005/2006 –, a sua primeira no Inter de Milão, seria também a primeira de sete temporadas a titular na baliza dos nerazzurri, onde conquistou mais de uma dezena de títulos, entre os quais cinco campeonatos, uma Liga dos Campeões e um Mundial de Clubes. Nesse primeiro ano, orientado por Roberto Mancini, venceria logo o primeiro campeonato, a primeira taça e a primeira supertaça. No plantel, estavam ainda Francesco Toldo, Materazzi, Javier e Cristiano Zanetti, Iván Córdoba, Verón, Cambiasso, Adriano, Cruz, Recoba, Solari e… Luís Figo.

Era o início da maratona vitoriosa de Júlio César em Itália, primeiro sob o comando de Mancini, que o orientou três temporadas, depois sob comando do português José Mourinho, onde viveu a melhor época da sua carreira (em 2009-2010, na segunda época do português, conseguiu finalmente vencer uma Liga dos Campeões e foi eleito o melhor guarda-redes do mundo pela UEFA.

Seguiram-se passagens por Inglaterra (Queens Park Rangers) e Canadá (Toronto FC). Mantendo a titularidade na seleção brasileira, Júlio César passou um momento complicado: saiu do Toronto FC e, no Mundial de futebol, onde esperava evidenciar-se, acabou humilhado juntamente com os colegas de equipa, com uma derrota por 7-1 contra a Alemanha, na meia-final. Foi aí que o Benfica lhe deu a mão.

Todos os que tiveram oportunidade de participar naquele jogo [7-1] fizeram uma reflexão para melhorar, para aprender algo. O mundo não parou ali, tivemos de encher o peito para seguir em cada dia a caminhada e os projetos, de olhar em frente. Foi quando o Benfica me abraçou”, disse numa entrevista.

Em Portugal, Júlio César começou por ser titular e criou uma boa relação com a bancada, também motivada pelos títulos que a equipa encarnada conquistava com o “Imperador” na baliza. Júlio César foi bicampeão com muitos jogos e, na época do tetra (2016/2017), perderia o lugar para Ederson — guarda-redes que está hoje no Manchester City e que é titular na Seleção Brasileira.

César ainda começaria a época seguinte — a atual, 2017-2018 — mas sairia a meio e rumaria ao Flamengo, onde agora termina carreira. Porquê? Ele próprio explicou, numa entrevista recente em que lhe colocaram uma questão sobre a pergunta que nunca lhe tinham feito e ele queria responder — e ele escolheu esse tópico:

Foi uma situação em que o Ederson foi vendido, eu acreditava que ia voltar a ter chance de jogar. Comecei a temporada como titular. Mas depois não aconteceu. Perdi a motivação, deixei de ser extrovertido, o cara que anima ambiente, profissional no que faz. Melhor era parar por aqui. Já não estava ajudando. E a relação com o presidente era muito boa. Falei para ele que queria encerrar o ciclo.”

O ciclo no Benfica terminou em novembro passado, o ciclo no futebol terminou este sábado, 21 de abril. Agora, o guarda-redes quer iniciar toda uma vida fora dos relvados: vai viver em Portugal (“Em  Portugal encontrei uma cidade como Lisboa que me abraçou. Custo de vida, segurança, alimentação… É o Rio sem violência.”) e quer tornar-se um empreendedor sem luvas. “Trabalhar com atleta, mercado imobiliário. Agregar conhecimento e informação para me impor nesse ramo de investimentos. É empresariar realmente, gestão”.

A carreira, essa, “foi mais do que um sonho. Nunca, mesmo em criança, imaginei uma carreira destas” e Júlio César, agora, do futebol só quer mesmo deixar um legado: a imagem de “um cara amigo, profissional, extrovertido”. O que sempre foi.