O Teatrão estreia a 25 de Abril, em Coimbra, “Eu, Salazar”, uma peça que apresenta um ditador de múltiplas facetas, imaginado por uma geração que nasceu após a revolução dos cravos.
“Qual é que foi o meu primeiro Salazar? Qual é que foi o primeiro contacto que tive com esta ideia de Estado Novo de quem foi Salazar?”. Foi esta a pergunta que o encenador e ator Ricardo Vaz Trindade lançou a si próprio, ao elenco e ao escritor Nuno Camarneiro, que participou na criação do texto da peça.
Partindo dessa pergunta, o espetáculo acaba por transformar Salazar em vários “Salazares imaginados” — possibilidades de um ditador que não existiu, ao mesmo tempo que se socorreram da figura histórica.
Para Ricardo Vaz Trindade, o espetáculo usa Salazar como se fosse um pedaço de plasticina moldado pelos atores e pelas suas memórias, resultando num homem diverso e distinto, encontrando-se um lado político, humano ou romântico. “É um laboratório teatral, onde experimentamos, onde ensaiamos fazer coisas com o Salazar”, disse à agência Lusa o encenador que faz do ditador na peça.
No palco, encontra-se um Salazar que procura seduzir ao som de tango, um outro somítico que nem carne, pão ou vinho precisa, um homem prostrado ao lado da mãe convalescente e o ditador, de voz fina e frágil, que vai tecendo as suas ideias para Portugal. Como é referido no texto de apresentação da peça, o ditador é retratado na Oficina Municipal do Teatro, em Coimbra, sem se querer explicar “o que há muito foi entendido, tampouco maquilhar o monstro ou ainda domesticá-lo”.
O espetáculo acaba por ser resultado de uma inquietação em torno da figura, deixando várias perguntas no ar, numa peça que tem como eixo um ator que procura ser Salazar, explica Ricardo Vaz Trindade, que tem quase a mesma idade que a do ditador quando este assumiu a pasta das Finanças durante a ditadura (é sobre esse Salazar “sem um futuro conhecido” que o espetáculo incide).
“Sabemos historicamente o que é Salazar, mas a isso juntamos cargas simbólicas que não são propriamente realistas e construímos cenas que são sonhos, devaneios, possibilidades”, resumiu.
O espetáculo conta com a consultoria dos historiadores Joana Brites, Luís Reis Torgal, Miguel Bandeira Jerónimo e Rui Bebiano, e a participação do escritor Nuno Camarneiro (prémio Leya 2012). Para o escritor, a peça trabalha as memórias de uma geração que não viveu o Estado Novo, mas que ainda o tem presente, “através das memórias dos pais”.
“Não quisemos que a tónica estivesse no Salazar histórico, na persona histórica. Mais importante que isso era o nosso olhar, o olhar da nossa geração, múltiplo e caleidoscópico”, contou à Lusa Nuno Camarneiro.
A peça acaba por ser tanto sobre o Salazar como sobre o ator (Ricardo Vaz Trindade) que quer interpretar o ditador que se assume como uma espécie de lente que se vai afastando ou aproximando, explicou, considerando que criar uma peça em torno da principal figura do Estado Novo é difícil.
“O caminho entre o apologético e a demonização da personagem é um caminho estranho. Não quisemos que a peça fosse uma coisa nem outra. A peça não tem uma moral, tem sobretudo perguntas”, frisou. Segundo Nuno Camarneiro, a pergunta central do espetáculo acaba por ser: “Até que ponto Salazar é algo que surgiu destacado de nós, portugueses, nós, país, ou foi uma emanação de nós?”.
A peça vai estar em cena na Oficina Municipal do Teatro de 25 de Abril até 13 de maio, de quarta-feira a sábado, às 21h00, e aos domingos às 19h00. O preço do bilhete varia entre quatro e dez euros. Para além da peça de teatro, são ainda promovidas pelo Teatrão quatro mesas redondas moderadas por historiadores sobre o Estado Novo e Salazar, estando também a ser criado um filme de João Vladimiro sobre o processo de construção da personagem. O elenco é constituído por Ricardo Vaz Trindade, Isabel Craveiro, João Santos e Margarida Sousa.