Ricardo Marco Crivelli e Ruan Pétrick Aguiar de Carvalho conheceram-se em 2010. O primeiro estava há dois anos no Santos, clube de São Paulo. O segundo estava, aos 11 anos, sem clube, depois de uma passagem pelo Portuguesa Santista. “Ele prometeu-me que me levaria a jogar no Santos”, disse Ruan à polícia quando apresentou queixa contra Crivelli por abusos sexuais. A promessa foi cumprida e passadas poucas semanas a criança integrava a equipa mas, agora, o clube está envolvido num escândalo que pode abalar as bases de um dos mais importantes centros de formação de estrelas de futebol do Brasil e da América Latina.

A história do jovem brasileiro surge um ano e meio depois de Andy Woodward ter revelado os abusos de que foi vítima por parte de Barry Bennell, considerado, durante anos, um dos melhores treinadores de juvenis do Reino Unido. De forma simbólica, o percurso de Woodward acabaria por cruzar-se com o de Ruan de Carvalho na semana passada: o britânico foi convidado para alertar os atletas do Santos Futebol Clube para situações de abusos contra menores.

O caso, de contornos semelhantes ao de Woodward, foi tornado público este mês, do outro lado do Atlântico. Na última sexta-feira, 13, Ruan de Carvalho decidiu formalizar a queixa por alegados abusos que diz terem ocorrido há oito anos.

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Os primeiros abusos terão acontecido ainda antes de Ruan integrar o clube. De acordo com a queixa que apresentou nas autoridades brasileiras, o jogador diz ter sido abusado em março de 2010, em casa do empresário. “O Lica passou a aliciar a vítima e passar a mão em seu corpo, pegando em órgão genital e iniciou sexo oral”, refere o documento, citado pela imprensa brasileira.

Foi muito difícil para mim revelar isto tudo, fiquei revoltado durante muito tempo, consumi haxixe e cocaína, não me fixava em clube nenhum”, contou o jogador. “Não é nada agradável contar essa história para os outros”, confessou à Folha de S. Paulo, o jornal que revelou a história, revelando pormenores do encontro com o responsável do Santos.

“Ele mexeu nas minhas partes íntimas, fez sexo oral em mim e prometeu levar-me para o Santos”, concretiza o jovem jogador. Ainda menor de idade, esteve um ano e meio no clube de São Paulo, e durante esse tempo teve de lidar com as críticas dos colegas de equipa, desagradados com a proximidade entre Ruan e Lica, como é conhecido o responsável pelo, até há poucos dias, coordenador das camadas de formação do Santos.

Estava prestes a subir de escalão, para os sub-13, quando o coordenador do clube voltou a convidá-lo para dormir em sua casa. Ruan estava longe dos pais, que continuavam no Paraná, e, dessa vez, decidiu recusar a proposta. Diz que foi aí que acabaram as suas hipóteses de seguir o caminho jogadores como Neymar ou, outro dos seus modelos, Ganso, médio do Sevilha.

“Foi uma frustração muito grande”, conta Ruan de Carvalho. “O meu sonho era jogar no Santos e acabou tudo dessa forma.” Ronildo Borges de Souza, conhecido pela alcunha de Batata, foi quem apresentou o jovem jogador ao técnico do clube. Também ele se viu envolvido num processo judicial, em 2016. Foi detido numa casa em que estavam hospedados 11 adolescentes e condenado por burla, exploração sexual e por ter criado uma espécie de prisão privada.

Impedido de perseguir uma carreira no palco maior do Santos, Ruan tentou mostrar o seu rasgo com outros emblemas ao peito. Passou pelo Red Bull e pelo Paraná, chegou a representar o Suryoye Paderborn da quinta divisão alemã, mas nunca conseguiu deslumbrar o suficiente para ser chamado por clubes de projeção internacional.

Por causa do que passou nos tempos do Santos, fiquei bastante deprimido”, assume, aos 19 anos, citado pelo El País. “Os abusos que sofri transtornaram-me, converteram-se numa outra pessoa.”

Frustrado com as experiências falhadas em campo, Ruan voltou a Marabá, no estado do Paraná. Voltou a casa. “Mas fiz uma série de disparates, destruí o carro do meu irmão, meti-me por caminhos errados e bebi bastante”, admite, para depois confessar: “Não era o rumo que queria para a minha vida.”

No início do ano, voltou a ser envolvido pela esperança. Entrou em contacto com Luciano Pereira, um agente com quem se tinha cruzado nos primeiros tempos do Santos. Havia uma nova oportunidade de regressar ao clube que o fez acreditar que poderia chegar a outros palcos. “A alegria durou pouco”, ainda assim. Percebeu que Lica continuava a ter altas responsabilidades no seu antigo clube e foi aí que decidiu avançar com a queixa.

Quando a Folha de S. Paulo revelou a história de Ruan de Carvalho, o Santos reagiu com “surpresa” ao relato do seu antigo jogador. O próprio presidente, sócio de Lica numa empresa de artigos de desporto, lembrou que o responsável “trabalha no futebol há mais de 20 anos, sem nenhuma mancha” no currículo. “Fomos apanhados de surpresa com essa denúncia”, mas, “imediatamente, o Comité de Gestão do Santos reuniu-se e optou pelo afastamento do profissional, para que ele possa se defender“, avançou, ainda que de forma contida. “Não podemos condenar ninguém por antecedência”, ressalvava José Carlos Peres numa entrevista em que a denúncia de Ruan foi o tema forte.

Afastado das suas funções, o responsável pela formação garante a sua inocência. A mensagem foi divulgada pelo advogado de Ricardo Marco Crivelli. O responsável do Santos “trabalha há muitos anos com crianças e nunca teve uma mácula na sua carreira. Confiamos na investigação policial. É uma questão de tempo até que a verdade faça o seu caminho.” Lica será chamado a prestar declarações na polícia em breve — sendo certo que já outro jovem apresentou queixa por ter alegadamente sido vítima de abusos na mesma casa em que Ruan diz ter sido vítima de Crivelli.