O tiro foi arriscado mas certeiro. Ao segundo álbum, que foi também o seu segundo disco de platina, J. Cole — rapper que ganhou notoriedade em 2009 quando Jay-Z o tornou o primeiro artista ligado à sua então nova editora, Roc Nation — já dava sinais de querer mudar. “Let Nas Down”, incluída nesse disco (Born Sinner), era já uma revisão crítica do seu percurso, em que Cole recriminava-se por ter cedido às pressões da indústria, por ter facilitado perante a ambição de ter êxitos virais, por ter desiludido o seu grande ídolo (que o absolveria e elogiaria na resposta “Make Nas Proud”).
[“ATM“, tema do novo álbum de J. Cole, ‘KOD‘:]
Um ano depois, em 2014 Forest Hills Drive, Cole mudaria de vez as regras do jogo e começava a deixar de ser promessa para passar a ser certeza. Na passada sexta-feira, o rapper e produtor musical de 33 anos, nascido em Frankfurt e criado na Carolina do Norte (mais tarde, mudou-se para Nova Iorque), lançou mais um álbum, KOD, o quinto da sua discografia. Dificilmente o disco não se tornará o quinto de platina na carreira musical do artista — afinal, o álbum já bateu um recorde, o de mais audições na plataforma de streaming Apple Music em 24h, ultrapassando (com 64.5 milhões de streams) o anterior líder VIEWS, de Drake. É possível que J. Cole tenha outras coisas em mente.
Rap consciente? Rap dissidente
Uma das poucas entrevistas que J. Cole deu nos últimos anos à imprensa tradicional foi ao jornalista e crítico do The New York Times Jon Caramanica, há precisamente um ano, poucos meses depois de ter editado o seu álbum mais controverso e divisionista, 4 Your Eyez Only. O disco, o quarto da discografia de Cole, acontecia depois uma mudança radical do rapper e compositor — que logo no título do (extenso) perfil do jornalista era apresentado como “o dissidente do rap platinado que escolheu sair dos holofotes”.
A dissidência resume-se assim: J. Cole decidiu deixar a vida de estrelato. Deixou de se interessar por “aquilo que crescemos a acreditar que queremos e de que precisamos. Dinheiro, mulheres, carros. E, acima de tudo isso — o que nunca me interessou especialmente — reconhecimento. É viciante. Reconhecê-lo é o primeiro passo”. Fez um disco sem convidados. Escreveu, produziu as batidas, não convidou nenhuma estrela para participar (como não o fizera já no anterior, 2014 Forest Hills Drive). Quis fazer ouvir a sua voz tanto quanto possível.
[O documentário sobre J. Cole feito para a HBO:]
Os singles de antecipação (revelados com videoclip no Youtube) não foram sequer incluídos. O álbum surgiu sem grande aviso prévio. Em vez de telediscos novos, fez dois documentários, um sobre a feitura do álbum, outro a passear pelas ruas de Baton Rouge, de Atlanta, de Ferguson, a ouvir as queixas da população local, a ouvir histórias de vidas duras, como a de uma avó de 52 anos com três empregos, três netos, um filho morto aos 19 anos e uma filha que morreu aos 14 assassinada por um vizinho que a tentou violar. Ouvir é o seu novo mantra, dizia então o The New York Times. E a mudança era também física, com J. Cole a ganhar uma barba desgrenhada e longos cabelos com rastas que lhe tiravam a imagem de “menino bonito” do meio musical.
Livrei-me de todas aquelas questões antigas a que as pessoas acham que têm de responder: qual é o single? A quanto tempo da edição do disco é que revelas o single? Quantas vezes é que ele toca na rádio? Quem é que aparece no disco? Ando a ouvir essas perguntas desde os anos 1990… Já não são relevantes. Não tens de ter “os convidados”. Não tens de lançar o single. Não tens de ter o single a tocar na rádio antes de lançares o disco. Não tens de seguir as regras “deles”. Podes lançar o álbum de que gostas e mesmo assim vender discos se te ligares às pessoas. Não vai acontecer da noite para o dia. Primeiro tem de se fazer arte — e depois sim, constrói-se o negócio à volta disso”, afirmou, em entrevista posterior a 2014 Forrest Hills Drive, que já abria caminho a 4 Your Eyez Only.
Se o disco que antecedeu 4 Your Eyez Only é ainda hoje considerado por muitos a obra-prima de J. Cole — o disco em que conciliou irreverência e maturidade, um discurso crítico sobre o que o rodeia e a afirmação das suas qualidades, batidas inspiradas no som clássico do hip hop nos anos 1990 a refrães certeiros –, esse foi o álbum que dividiu fãs e ouvintes. Houve quem lhe gabasse as qualidades e o conceito à volta do qual construiu o disco — rimas como um misto de cartas de despedidas de um homem prestes a morrer que queria contar a sua história antes do crime o levar para a morgue e rimas de J. Cole a celebrar a vida familiar e espiritual que escolhera pouco antes, quando se casou e teve um filho cujo nome e sexo nunca revelou. Outros, acharam o discurso requentado — e as músicas pareceram-lhes pouco memoráveis…
Achei que seria incrivelmente poderoso para os negros verem pessoas negras falarem umas com as outras e verem um rapper que é um considerado um dos maiores artistas de rap a ouvir, apenas. Estas são as pessoas que nunca são ouvidas, pelo mundo ou sequer entre si”, dizia J. Cole há um ano, a propósito do documentário que fez.
https://www.youtube.com/watch?v=9VzpCmRtCL0
KOD é o novo trabalho. As siglas significam três coisas: Kids on Drugs (“Miúdos a tomar drogas”), King Overdose (“A overdose do Rei”) e Kill Our Demons (“Matar os nossos demónios”). É a quinta peça na complexa tapeçaria discográfica de J. Cole, esta mais dedicada àquilo que o artista de hip hop parece ver como praga deste século — o uso massificado de medicamentos e drogas, glorificado aliás por vários (por sinal muito populares) rappers nos seus temas, nos Estados Unidos como em Portugal, e cujo vício chegou a afetar a sua mãe (fala nisso em “Once an Addict”). O álbum parece já ser mais um trabalho que divide quem o ouve: há quem não perceba que Cole use a estética sonora do trap para criticar algumas das mensagens mais veiculadas pelos que o fazem (como em “ATM”, onde J. Cole mimetiza — satiricamente? — os videoclips e a estética sonora do trap). Os elogios públicos a rappers como Cardi B adensam a confusão.
Tentar provar que podia fazer algo que os outros achavam que não podia era um lugar triste para se estar, quando olho para trás. Qualquer pessoa razoável estaria extasiada com o sucesso. Eu não tinha esse sentimento. Escolhi este caminho — e caramba, como ele sabe bem”, dizia ao The New York Times, a propósito da sua mudança de vida.
Entre algum egotrip (elevação das suas qualidades, como na faixa título, onde responde “apenas uma vez” e em definitivo ao motivo para não ter convidados: “Os niggas não são suficientementes valiosos para entrar na minha cena”), rimas sobre a obsessão com as redes sociais (“O amor hoje tornou-se digital / e está a interferir na minha saúde”), sobre as relações de amizade movidas a interesse (“Tive de cortar com algumas pessoas porque estavam a usar-me / o meu coração é grande, quero dar demasiado”), sobre o poder do dinheiro (“Sei que vai resolver todos os problemas que tenho”, rima ironicamente) e, acima de tudo o resto, sobre a tentação de usar auto-medicação para fugir aos problemas (uma voz feminina percorre todo o disco dizendo “Choose wisely” — “opta por escolhas inteligentes” — e o tema “Friends” resolve o resto da equação), sucedem-se as “vozes” e personagens.
Quantas das personagens a que dá voz no seu novo disco são satíricas e quantas fazem ou fizeram parte de J. Cole a dado momento, é algo que o rapper não quer revelar. Quando revelou o significado das siglas do título, disse-o aliás explicitamente: explicava isso, o resto ficava à mercê da interpretação de cada um. O jornal inglês The Guardian, que já ouviu o disco, ficou rendido: o crítico Alexis Petridis chamou-lhe “um antídoto brilhantemente crítico e profundo aos excessos do hip hop” atual.
Na sombra de Lamar (com ele à vista)
Se Kendrick Lamar é o novo rei do hip hop — respeitado pela comunidade e pelas elites que lhe atribuíram o primeiro prémio Pulitzer para um criador de música popular (fora, portanto, dos domínios da música clássica e música jazz), ouvido nas discotecas e nas marchas de protesto de movimentos como o Black Lives Matter, apreciado nas mansões dos bairros mais requintados e nas ruas de bairros como Compton, onde nasceu –, J. Cole será aquele que o seguirá mais de perto entre os rappers que emergiram esta década.
[No ano passado, Jeezy juntou no tema “American Dream“, do seu álbum, os dois rappers:]
Há outros fenómenos, claro, de Drake e Russ — que misturam hip hop com pop e R&B, jogando portanto noutro campeonato –, a grupos como os Migos e rappers como Future, que, ancorados numa fórmula sonora cada vez mais musicalmente legimitada (o trap), são igualmente atrativos para uma grande franja de ouvintes (mais jovens) mas que não reúnem o mesmo consenso e abrangência.
Lamar e Cole fazem o pleno: a crítica rende-se às suas rimas e batidas, os mais puristas e conversadores reconhecem-nos como os “mensageiros resistentes” de um género que já foi mais reivindicativo e (polémicas e discussões à parte) até os ouvintes de Lil Pump, Lil Uzi Vert, Lil Yatchy e outros proeminentes do trap não lhes enjeitam as canções e o talento.
Os dois já trabalharam juntos: J. Cole (que tem apadrinhado muitos novos artistas através da editora que fundou com o seu manager Ibrahim Hamad, Dreamville Records) criou o instrumental de “HiiiPoWer” para Kendrick Lamar em 2011, foi convidado para atuar recentemente durante um concerto de K.dot (ver vídeo acima) e os dois surgiram juntos em “Black Friday” e em “American Dream”, a última lançada no álbum do rapper Jeezy, em 2017. Os rumores de que têm mais temas preparados para lançar num álbum conjunto também já é antigo…
[“Wet Dreamz” foi uma das canções mais ouvidas do terceiro álbum de J. Cole, 2014 Forest Hills Drive. Soma quase 100 milhões de visualizações no Youtube:]
Até aos ouvidos de Rui Veloso já chegou que Kendrick Lamar é mais “sofisticado” do que a maioria, como afirmou o português, numa entrevista recente em que chamava ao rap “poesia de rua” e não “música”. Mais do que isso: os dois MC’s não desistem de questionar as origens do racismo, da pobreza e da criminalidade ao mesmo tempo que questionam a resposta violenta a tudo isso da comunidade afro-americana.
“Dizem-nos para vender droga, rappar ou ir para a NBA — por esta ordem”, cantava J. Cole em “Immortal”. No tema “Change”, também de 2016, contrapunha a voz de alguém que dizia “Eu juro por Deus, nigga, vou matar aqueles niggas, meu, prometo-te” com a de uma pessoa a falar no funeral da personagem fictícia (inspirada num amigo de J. Cole) que o artista colocou no disco: “Estamos aqui reunidos hoje para chorar pelo fim da vida de James McMillan Jr. Uma tragédia, mais uma tragédia na comunidade negra…”. A América ouve, pensa, dança e avança ao mesmo tempo — e o mundo segue a onda.