A história começou com um telefonema enigmático. Ao bater da uma, telefona o Presidente da APEL, a informar que passará pela livraria uma ou duas horas depois e a perguntar se gostaríamos de receber uma visita. Agradeci a informação, estranhei a pergunta: pensei que estivesse a falar dele próprio, e mesmo os mais cerimoniáticos clientes não costumam perguntar se gostamos de os receber. Entram, vêem, folheiam e, se estiverem interessados em tornar aprazível a sua visita, compram uns livros. Estranhei, portanto, a pergunta, mas convenhamos: no meio de milhares de livros antigos, não era aquela a coisa mais rara com que havia de me ocupar.
Pousei o telefone e voltei ao pacato labor livreiro. Para manter a exótica imagem que os leitores fazem de um alfarrabista, não contarei em que consiste o misterioso dia-a-dia de um livreiro. Escondo o lápis e o pano do pó da vista dos curiosos e avanço até à hora em que entrou de mansinho (eu nem o vi entrar, aliás, só o vi lá dentro), o dito presidente da APEL.
A primeira meia-hora confirmou o meu pensamento. Percorreu as estantes, examinou as lombadas, abriu um ou outro livro, conversou com o professor Rui Ramos e saiu: enfim, uma visita costumeira ou, se quiséssemos dar mais frisson a uma história sem ele, escapáramos à inspecção da Associação Portuguesa de Livreiros.
Ora, acontece que, pouco depois, o ilustre presidente da nossa Associação voltou. Voltou, já iríamos perceber porquê, porque “trazia aí uma surpresa”. Talvez um livreiro mais arguto tivesse imaginado o que era; provavelmente, qualquer cidadão mais informado já saberia o que esperar. Os leitores, porém, compreendam: naquela livraria, o jornal mais recente que apareceu nos últimos anos foi uma monstruosa gazeta dos tribunais do princípio do século XX; o computador mais recente que tivemos funcionava ainda a disquetes. Nem o Google me poderia informar que era dia do livro, nem os jornais podiam anunciar as intenções da Presidência da República. Por isso, a surpresa foi de facto surpresa quando chegou.
Não posso dizer que o princípio tenha sido agradável. Afinal preocupo-me com os meus clientes e, antes de conseguir distinguir qualquer outra coisa, vi um deles ser tragado por uma maré colossal de jornalistas. Só descansei quando vi um Oficial da Marinha, decerto importante para nos guiar entre aquele mar de gente. A fanfarra foi digna: à falta de espingardas para a salva dispararam os fotógrafos, piscavam luzes capazes de matar um epiléptico, e a comitiva, numa organização de fazer inveja a muitas paradas militares, conseguiu entrar toda na livraria.
Garanto que não é fácil: haverá funis mais largos do que aquela livraria, pelo que a entrada de todos implicou certos esforços, muitos encolheres de barrigas e um considerável tempo ensanduichado com os comparsas da Presidência. Os jornalistas, aliás, entupiam a entrada, e só não juro que não trepavam uns pelos outros porque o astigmatismo não permite juramentos à distância a que eu estava.
Infelizmente, a livraria não tem grande bodo para sobressaltos políticos. Não tem contrato a prazo nem rendas exorbitantes, pelo que fui dispensado do tradicional abraço do “Presidente dos afectos” que pôde dedicar todo o seu afecto aos livros.
A vistoria foi rápida – ou não se tratasse de Marcelo – mas proveitosa. Guiado pelo professor Rui Ramos, que foi explicando os truques da casa na óptica do cliente, comprou dois livrinhos do fundo da Revista Ocidente. Antes, também o Pedro Mexia comprou a Obra poética do Cinatti. Dois clientes entre a comitiva presidencial – não serviria para aguentar uma das novas rendas do Chiado mas, à falta do problema, não nos podemos queixar.
Para mostrar que até nos sítios improváveis quebra o protocolo, Marcelo subiu à zona proibida para ver os livros que não estão à venda. Cobiçou os manuscritos, deixou uma ou duas palavras simpáticas e, com eficácia moisaica, conduziu a maré para outro lado. Se fosse há uns anos, nem mesmo o professor Marcelo chegaria fresco àquela paragem. Se ficasse apenas pela Rua da Misericórdia, já chegaria exausto de vasculhar o arquivo da loja das colecções, rouco de uma longa tertúlia na Artes e Letras, asmático de aspirar o pó dos livros antigos da Camões e da Olissipo, e isto se não viesse da Calçada do Combro, em que já teria passado pela Nova Eclética, Letra Livre, Avelar Machado, Alexandria, Antiquária do Calhariz, Burnay, Castro e Silva e sabe Deus quantas mais. Várias, por circunstâncias diferentes, foram fechando. É pena