Quase pronta mas em obras, porque é que a nova torre de Picoas foi o cenário escolhido para a apresentação do programa da Trienal de Arquitetura de Lisboa 2019? Talvez uma discreta homenagem ao arquiteto Diogo Seixas Lopes (1972-2016), autor do edifício juntamente com a mulher e sócia, Patrícia Barbas. Mas ao que disse arquiteto José Mateus, diretor da Trienal, não foi de certeza uma demonstração de apoio a um projeto polémico que chegou a estar embargado por causa de dúvidas da Assembleia Municipal de Lisboa. “Simplesmente, este edifício é um facto arquitetónico na cidade”, justificou.

Interessou-nos porque está em construção, tal como a programação da Trienal, e estabeleceu um debate sobre o que se pode fazer na cidade, que é também o que a Trienal faz à sua maneira”, acrescentou o diretor.

Conhecido como torre de Picoas, ou Edifício 45, destaca-se já hoje pelo aspeto imponente, com fachada de espelhos cor de bronze. Situa-se na confluência de três acessos centrais: Avenida Fontes Pereira de Melo, Avenida 5 de Outubro e Rua Latino Coelho, junto à Maternidade Alfredo da Costa e ao hotel Sheraton – uma das zonas emblemáticas de Lisboa.

O projeto resulta de um concurso lançado pela Câmara. A construção iniciou-se em 2016, mas só avançou em força nos últimos meses, devendo estar concluída já em junho, disse ao Observador a arquiteta Patrícia Barbas, que assistiu à apresentação da Trienal em conferência de imprensa, nesta terça-feira.

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O projeto do edifício é shell and core, ou seja, a pele e os espaços comuns. Esperamos fechar até ao verão”, adiantou a autora. “Há quem diga que são duas torres, mas não são. É uma só. Um edifício com dois volumes: um com 17 pisos e outro com 14.”

Tem 68 metros à superfície, tal como o prédio do Centro Comercial Imaviz, ali em frente, e mais seis pisos subterrâneos com 221 lugares de estacionamento. Os andares superiores têm cerca de 1400 metros quadrados cada um e destinam-se a escritórios, estando prevista a abertura de lojas no rés-do-chão. O investimento foi de 70 milhões de euros – da promotora Edifício 41, ligada à ECS Capital. A gestão é da consultora Rockbuilding, com projeto de estruturas dos engenheiros João Almeida e Miguel Lourenço e empreitada está a cargo do consórcio Mota-Engil/Casais.

[vídeo do atelier Barbas Lopes com o estado da construção há poucas semanas]

Os 70 milhões incluem “toda a operação”, segundo Patrícia Barbas: terreno, zona envolvente, projetos de arquitetura, estaleiro e taxas. É que além da torre propriamente dita, o gabinete Barbas Lopes projetou também um acesso à Casa-Museu Anastácio Gonçalves, situada nas proximidades, e ainda um espaço público verde que ligará ao jardim da Maternidade, pondo fim à circulação automóvel naquela parte da 5 de Outubro. Esse espaço verde, identificado como nova Praça Picoas, deverá estar pronto em setembro. Terá uma “plantação luxuriante, diversa na forma, cor e textura”, diz a memória descritiva.

Foram estas alterações que geraram polémica, com a Câmara de Lisboa a ceder uma parcela adicional de terreno junto ao lote, em troca do projeto de ajardinamento na área oposta, frente à maternidade. Essa cedência levantou dúvidas à Assembleia Municipal, entre 2014 e 2016, e acabaria por ser aprovada apenas com os votos do Partido Socialista.

“A obra esteve embargada por suspeitas relacionadas com permutas de terrenos e e até ao esclarecimento das coisas não se podia avançar com os trabalhos”, resumiu a arquiteta, segundo a qual “a polémica já passou”, pelo que agora o edifício é “um facto consumado”.

“Nostalgia da cidade perdida”

A conferência de imprensa decorreu no terceiro piso do edifício, uma sala ampla com o chão ainda em cimento, onde cheirava a soldadura e eram visíveis, no teto, cabos elétricos e condutas de ar. No fim, os jornalistas foram convidados a conhecer o oitavo andar, de aspeto semelhante.

Também presente, o curador e professor de história da arte contemporânea Delfim Sardo analisou, a pedido do Observador, a polémica em torno desta construção, considerando que os edifícios novos, e este em particular, “sofrem muitas vezes de uma resistência” a que chama “nostalgia permanente da cidade perdida”.

A polémica parece estar ligada a uma nostalgia do edifício que existia neste sítio [um palacete] e que estava devoluto há anos e anos. Há sempre uma energia conservadora em relação às cidades, não só da opinião pública, até de certos comentadores que deveriam ter uma visão mais culta e mais informada”, disse Delfim Sardo. “Tudo que vemos nas cidades é resultado de um palimpsesto, são camadas que se entrecruzam e tempos diferentes que se misturam. Não é possível congelar a arquitetura no tempo. Até as pessoas se envolverem e deixarem de fazer apenas um juízo visual, para passarem a fazer um juízo sobre o uso, demora bastante tempo.”

De resto, o antigo diretor do Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém, e atual consultor da Trienal, destacou a “enorme qualidade” arquitetónica da torre.

“Tem uma excelente volumetria e ótima modulação. Quando estiver concluído, a maneira como se inscreve na cidade será bastante mais discreta do que aquilo que aparenta. É um edifício de enorme racionalidade e qualidade, porque estrutura muito bem esta esquina da cidade. Vai ser um edifício marcante e apreciado a seu tempo”, afirmou Delfim Sardo.

Ventilação natural

Para Patrícia Barbas, projetar a torre constituiu “um enorme privilégio”, porque lhe permitiu “desenhar um edifício e uma pequena parte da cidade”. Destacou a facto de o prédio ter certificação energética A e certificação ambiental LEED (Liderança em Energia e Design Ambiental), o que “implica um grau de sustentabilidade muito elevado”.

A ideia de que o arquiteto escolhe apenas formas não corresponde à nossa maneira de ver a arquitetura”, explicou. “Não vejo a questão ambiental como uma questão, deve ser simplesmente incorporada pela arquitetura. Não deve ser uma bandeira, tem de ser parte integrante.”

A fachada tem ventilação natural, por exemplo, o que no dizer de Patrícia Barbas “é muito pouco usual” em edifícios de escritórios, permitindo poupar eletricidade, até porque “um edifício de escritórios é um sugadouro de energia”.

A ventilação natural faz parte da gestão centralizada do edifício e tem comandos individuais. A pessoa, no seu local de trabalho, pode abrir ou fechar a janela. Imagine-se que no verão, se tivermos uma noite mais fria, o edifício pode abrir todo para arrefecer, e quando começa o dia de trabalho os ares condicionados vão ter de trabalhar muito menos para fazer o arrefecimento”, exemplificou. “Há também reaproveitamento das águas dos lavatórios para alimentar autoclismos, além de que a cobertura do último piso é praticamente forrada a painéis fotovoltaicos, para produção de energia.”

José Mateus apoia modelo da DGArtes

A Trienal de Arquitetura de Lisboa surgiu em 2007 e apresenta-se como fórum de debate e impulsionador de exposições temáticas sobre a relação da arquitetura com as pessoas. A quinta edição terá lugar entre 1 de outubro e 31 de dezembro de 2019 sob o tema genérico “A Poética da Razão”, foi revelado nesta terça-feira.

O curador-geral convidado é Éric Lapierre, que coordena uma equipa de oito pessoas. O arquiteto e crítico francês transformou a conferência de imprensa numa breve palestra sobre o que é hoje a arquitetura.

Tem sido totalmente desafiada por vários média, desde logo a internet e todo o tipo de imagens, por isso, um bom edifício é hoje aquele que tem uma boa imagem. A arquitetura tem-se focado na imagem e isso, por vezes, levou os arquitetos a esquecer alguns elementos cruciais, como seja a racionalidade da construção. Os edifícios são agora muito mais imagens do que formas arquitetónicas com uma ligação ao passado”, analisou.

É este um dos motes para as cinco exposições temáticas anunciadas nesta terça-feira, que decorrerão em 2019:

  • Economia de Meios”, no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, com curadoria de Éric Lapierre;
  • Do lado do Campo: Permacultura para Arquitectos”, na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, com curadoria de Sébastien Marot;
  • Espaço Interior”, na Galeria Millenium, com curadoria de Mariabruna Fabrizi e Fosco Lucarelli;
  • O Que é o Ornamento?”, na Culturgest, com curadoria de Ambra Fabi Giovanni Piovenne;
  • e “Beleza Natural”, no Palácio Sinel de Cordes, com curadoria de Laurent Esmilaire e Tristan Chadney.

Num balanço da edição anterior da Trienal, a de 2016, José Mateus destacou alguns números: 155 mil visitas às exposições e conferências, 178 convidados de 38 países e mais de duas mil notícias na imprensa portuguesa e estrangeira.

Fez também referência a uma apresentação do programa de 2019 que decorrerá dentro de poucas semanas no âmbito da Bienal de Veneza, um momento para chamar a atenção do público internacional.

A Trienal de Arquitetura, organizada por uma associação sem fins lucrativos com o mesmo nome, contará entre 2018 e 2021 com um apoio de 1,12 milhões de euros da Direção-Geral das Artes, a cujo Concurso de Apoio Sustentado se candidatou. A propósito, José Mateus defendeu que “devem aumentar” as verbas do Orçamento do Estado para a Cultura, porque “há muitos anos que as verbas são insuficientes”. Porém, disse não partilhar das críticas ao novo modelo de concursos para subsídios da DGArtes – críticas que no início deste mês levaram muitas centenas de artistas a protestos nas ruas.

“A Trienal, tal como muitas outras estruturas, foi convidada a participar na construção deste modelo de apoio às artes. Já depois do concurso, enviámos uma carta a identificar erros nos formulários. Alguns terão tido tempo para participar, muitos não o fizeram. Claro que este modelo pode ser melhorado, mas quem tem sugestões a fazer é bom que as faça, a Trienal fê-las”, declarou José Mateus.