O inquérito continua em segredo de justiça. Mas por considerar “relevante” o seu conteúdo para o “esclarecimento” de todos, o Ministério Público revelou esta quinta-feira o relatório da auditoria aos incêndios de Pedrógão Grande — isto após o levantamento pela Procuradoria Geral da República do segredo de justiça face ao relatório e retirando todos os nomes dos envolvidos nele constantes.

E o relatório confirma, como noticiou o Público nesta quarta-feira, que os auditores afirmaram que não acederam a todos os documentos relevantes por estes terem sido “apagados” ou “destruídos”.

“Importa referir que ao longo do presente inquérito sempre nos deparámos com limitações na obtenção de elementos de prova não consentâneas com as possibilidades que fornecem as tecnologias atuais”, explica-se no documento. O relatório precisa que “não foi possível aceder a um único SITAC [quadro de situação tática], a um único quadro de informação das células ou a um PEA [plano estratégico de ação]”, uma vez que todos esses documentos “haviam sido ou apagados dos quadros da VCOC [viatura de comando e comunicações] e VPCC [veículo de planeamento, comando e comunicações] ou destruídos os documentos em papel que os suportavam”.

“Como foi oportunamente divulgado, o Ministério Público recebeu, em novembro de 2017, da Autoridade Nacional de Proteção Civil, o relatório final de uma auditoria realizada por aquela entidade na sequência dos incêndios de Pedrógão Grande”, lê-se na página do Ministério Público, que acrescenta que o mesmo foi “junto aos autos onde se investigam as circunstâncias que rodearam os referidos incêndios, sendo considerado no âmbito das investigações em curso” — razão pela qual se encontrava em segredo de justiça e foi guardado ao longo de seis meses.

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“Quando um documento é incorporado num processo em segredo de justiça, passa a ficar sujeito a esse regime. Contudo, face à relevância do respetivo conteúdo para o esclarecimento público e por se considerar que não existe prejuízo para a investigação, procede-se à divulgação do referido relatório, do qual foram retiradas as identidades das pessoas nele mencionadas”, justifica.

Atrasos irrecuperáveis e danos irreversíveis

Num documento com 133 páginas, a ANPC aponta 55 conclusões pormenorizadas, desde o momento em que chegou o alerta, até 72 horas depois. E no documento considera terem existido situações de “funcionamento deficiente” e de desorganização que levaram a “atrasos irrecuperáveis” e “consequências irreversíveis”.

Para começar, considera que o Aviso Laranja do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) para o tempo quente na zona de Leiria “deveria ter sido objeto de melhor análise” por parte das autoridades.

Quanto ao incêndio, explica que “não cedia e impunha o empenhamento de mais meios e, muito provavelmente, um rápido desenvolvimento da organização operacional”. Três horas depois do primeiro alerta, segundo o relatório da ANPC, ainda não existia “uma organização bem definida”, mas havia “falta de recursos técnicos e materiais”.

Também a mudança do Posto de Comando Operacional para os estaleiros da Câmara Municipal de Pedrógão Grande é vista como “duvidosa em termos técnicos”. Acabaria por verificar-se que o “local, afinal, não era apropriado”.

Quatro horas depois do primeiro alerta, o funcionamento da operação de combate mostrou-se “deficiente”. Faltava um “posto de comando organizado, fluente nos seus trabalhos e com as células a funcionar em pleno”. Outro problema, era a falta de informação meteorológica atualizada.

Só cinco horas após o primeiro alerta é que “as células são claramente atribuídas e (…) abandonam a insipiência embrionária”. Mas nessa altura, lê-se no relatório, o plano estratégico de ação “já estava desatualizado” e não tinha em conta a “dimensão que o incêndio já possuía”. Aí, questões como “a deficiente e tardia consolidação das fases SGO [Sistema de Gestão de Operações] e o tempo gasto na relocalização do Posto de Comando Operacional começam a ter consequências notórias”, com o fogo já a chegar às povoações, indica o relatório.

O combate passou, assim, a ser “puramente reativo, deixando de existir qualquer antecipação nas operações”, elenca a ANPC, referindo que se segue um “aumento considerável dos pedidos de socorro” e “problemas de comunicações”. “Acode-se onde pedem e onde os meios chegam. O incêndio deixa de ser combatido”, sinaliza aquela entidade, falando nas primeiras notícias da existência de mortes.

Mais de 67 horas após o alerta, “os danos provocados pela deficiente e tardia evolução e consolidação das fases do SGO são já gigantescos e irreparáveis”, aponta a ANPC.

Entretanto, são ainda visíveis problemas de articulação entre o posto de comando e o Comando Distrital de Operações de Socorro de Leiria, segundo a Proteção Civil, que diz também “estranhar” o facto de o plano municipal de emergência não ter sido acionado nas primeiras horas. “Mas já decorreram já 72 horas sobre o primeiro alerta. As consequências são irreversíveis”, conclui o relatório, datado de outubro do ano passado.

Em junho de 2017, os incêndios que deflagraram na zona de Pedrógão Grande provocaram 66 mortos: a contabilização oficial assinalou 64 vítimas mortais, mas houve ainda registo de uma mulher que morreu atropelada ao fugir das chamas e uma outra que estava internada desde então, em Coimbra, e que acabou também por morrer. Houve ainda 250 feridos.