O jogo terminou há mais de uma hora, mas ninguém arreda pé do interior do estádio. Nem podia ser de outra forma. Dentro de segundos, os jogadores do FC Porto vão levantar o troféu de campeão nacional, o 28º da história do clube e um dos mais saborosos. No centro do relvado, os jogadores já só têm olhos para o “caneco”, tesouro perseguido ao longo das últimas 32 jornadas e que chegou a parecer estar irredutivelmente perdido algures entre Paços de Ferreira e Belém. O speaker de serviço vai marcando o ritmo (Oooooohhhhhh), com os mais de 50 mil adeptos a juntarem-se-lhe em coro. O momento parece durar uma eternidade, até que… Uuaaaaaaaaaa!, a explosão colectiva provocada pelo erguer de braços de um jogador caído em desgraça e elevado ao olimpo portista em 891 noites. Nas mãos de Hector Herrera, bem segura, a taça de campeão nacional é mostrada aos adeptos. O Dragão volta a gritar e a sorrir: “Campeõooooeees, Campeõooooeees, Nós soooomos cam-pe-õooes.”

Um momento que condensa o que foram os últimos 1.813 dias para os portistas. Foram quase cinco anos sem ver um dos seus a levantar o troféu mais ambicionado do futebol português. Foram dias a mais, até para um presidente que faz de lema a ideia de que “largos dias têm cem anos”. E isso, essa ânsia de vencer, sentiu-se este domingo em cada jogador e adepto, quando se entregaram aos festejos. Sentiu-se em Casillas — campeão mundial, bicampeão europeu, três Ligas dos Campeões, cinco vezes campeão nacional pelo Real Madrid — a comportar-se como o garoto que conquistou o primeiro troféu, acabado de chegar aos seniores. Ou em Alfredo Batista, 63 anos, cabelos brancos e bigode amarelo-tabaco, que confessava ao Observador, horas antes do jogo, que passara a noite anterior a “chorar de emoção” nos Aliados. “Nestas coisas um homem também chora, qué’que pensa”, dizia, orgulhoso.

Sentiu-se em Marega, de quem (quase) todos duvidavam e que agora tem um clube aos seus pés. Sentiu-se em Diogo, 10 anos, às cavalitas do pai, que não parava de repetir, de braços estendidos, “Puoooortooo, Puooortoo”, assim mesmo a carregar no “u” imaginário. Ou em Sérgio Oliveira, o “menino dos 30 milhões”, que parecia condenado a ser uma eterna promessa, eventualmente fadado a sair do FC Porto pela porta pequena como tantos outros antes dele, e que assumiu a titularidade e a batuta das comemorações, sempre agarrado ao microfone. Ou nas centenas (e depois milhares) que, ainda durante a tarde, bebiam “finos” gelados, remédio santo para o sol quente de domingo, e brindavam ao “único pentacampeão de Portugal”.

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Sentiu-se em Hector Herrera, claro, que atingiu a redenção reeditando Kelvin, o herói do último título portista. Mas também em Brahimi, tantas vezes justamente incompreendido, fenómeno tão complexo como os dribles do argelino. Uma ânsia por vencer empenhada nos pregões das mulheres que traziam a última moda da parafernália azul e branca: “Olhooó cachecol a cinco euros, cinco euros”, carregando no “eu” e silenciando o “os” — eu-rus. Ou em Felipe, patrão da defesa portista, atirado para fora do jogo do título por acumulação de cartões amarelos, mas um dos mais efusivos no final da partida.

E na rulote do “Leitão do Zé” — qualidade comprovada –, onde ao início da tarde já se rejubilava com as perspetivas de negócio. “Isto hoje é que vai ser!”, dizia, apostamos, Zé, enquanto esfregava as mãos antes de entregar a próxima sande — sande, sim, porque aqui a palavra “sandes” é o plural de “sande” e no “Leitão do Zé” a dose individual era a que tinha mais saída. Mas sentia-se também em “Tiquinho” Soares, que esteve, ainda esta época, com pé e meio fora do clube, e que se ajoelhou assim que ouviu o seu nome ser chamado para se juntar à festa no relvado.

Uma sede de vencer sentida em cada sopro (e foram tantos, tantos, tantos..) que a criançada dava nas cornetas azuis, em tudo parentes próximas das infernais vuvuzelas. Nada que tivesse incomodado Vicent Aboubakar, que chegou a jurar que nunca mais regressaria ao FC Porto, para depois voltar ao clube, herdar o cântico que fora de Benny McCarthy e entrar no relvado com a ginga a que habituou os adeptos e o respeito de que se tornou merecedor. E por falar em herança, o que dizer de Gonçalo Paciência, portista dos quatro costados, resgatado ao Setúbal a meio da época, bem a tempo de liderar os festejos do clube e de fazer as vezes de líder da claque entre os jogadores.

Foram dias a mais de jejum para os portistas. “Agora é a nossa vez de cantar”, explica Fernando, enquanto aponta para o grilo (sim, um grilo) que carrega numa gaiola azul, com alface e tudo. Dias a mais também para o Rodrigo e os amigos, nos quinzes, que se habituaram a ver o Porto tricampeão (e vencedor da Liga Europa) e não estavam preparados para a travessia do deserto que se seguiu. “Foram anos muito duros, mas agora vai ser tudo nosso. É tudo nosso e nada deeeeeles, cara***”, grita, como quem se liberta de um fardo demasiado pesado para carregar em tão tenra idade– e das perguntas do Observador.

Mas, e sobretudo, sentiu-se em Sérgio Conceição, o homem que prometera “vir para ensinar e não para aprender” e que jurara que este não era o ano do penta do Benfica. Às lágrimas da véspera, os adeptos responderam este domingo com repetidas ovações e uma tarja gigante: “Obrigado, Mister, por trazer de volta os nossos valores!

Nas últimas 48 horas, primeiro nos Aliados, depois na Alameda do Dragão, os portistas exorcizaram os seus fantasmas. Quebraram o ciclo de hegemonia do maior rival e viram o clube, numa época que se adivinhava particularmente difícil pela falta de investimento e contratações, sagrar-se campeão nacional. O “penta, ciao”, música tão orelhuda como provocatória, transformado num hino de libertação. A libertação de quatro anos que os portistas se recusaram a aceitar como normais. Este título é a “fiore del partigiano” e no próximo sábado há mais festa: os portistas vão desfilar nos Aliados para serem recebidos na Câmara Municipal do Porto.