E se Cristiano Ronaldo imaginasse cachorrinhos gigantes dentro do campo? Em “Diamantino”, Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt constroem uma personagem que traz à memória Ronaldo. Diamantino Matamouros (Carloto Cota) é um jogador de futebol top, madeirense, é próximo da família e Portugal está nos seus ombros. Mas o que interessa em “Diamantino”, que tem estreia mundial esta sexta-feira, na Semana da Crítica do Festival de Cannes, é a ideia de símbolo nacional, de divindade ou de alguém que faz coisas divinas, a construção de uma personagem quase mitológica como ela existe nos dias de hoje. Melhor, no imaginário de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt.

Os dois realizadores trabalharam no passado em “A History Of Mutual Respect” (2010) e “Palácios de Pena” (2011) e em “Diamantino” concretizam uma obramais próxima do cinema comercial ou popular. A ideia surgiu de uma junção de fatores. Ambos queriam fazer um filme sobre Portugal e Gabriel Abrantes há muito que queria trabalhar com Carloto Cota: “A cara, o corpo, a atitude e a idade do Carloto são perfeitas para esta personagem. Quando pensei na ideia de um ícone português que o Carloto poderia fazer e que toda a gente reconheceria, a ideia de jogador de futebol foi muito óbvia”.

Diamantino Matamouros, protagonista do novo filme de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, é interpretado pelo ator Carloto Cota

E há dois ensaios de David Foster Wallace, “Roger Federer As Religious Experience” e “How Tracy Austin Broke My Heart”, que serviram de inspiração. No primeiro há a leitura da criação dessa figura mitológica, como Gabriel explica: “O início do filme é uma citação disso, de como antes havia pintores como o Miguel Ângelo, o Leonardo Da Vinci, ou escultores como o Gian Lorenzo Bernini e a técnica deles era quase sobre-humana. Havia um espanto de qualquer pessoa em ver algo feito por um humano, poderíamos acreditar em Deus, porque essas pessoas faziam coisas maravilhosas que não deveriam conseguir fazer. E hoje em dia isso passou para o desporto, esse evento estético já não existe nas artes. Nas últimas décadas, houve um desfazer da técnica nas artes plásticas, na música”.

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Do segundo veio a leitura de David Foster Wallace da biografia da tenista norte-americana Tracy Austin e a desconstrução das frases feitas “a família é importante”, “o trabalho é importante”, “treinar é importante”, “o trabalho de equipa é importante” ou “o dinheiro não importa”. Gabriel encontrou aí o tal vazio, os cachorrinhos que Diamantino imagina no campo: “O Wallace diz que lemos estas biografias de desportistas porque queremos saber o segredo para este génio, talento, e o que ele descobre é que na maior parte das vezes a chave para o génio é um vazio absoluto, uma naïveté, ignorância, quase um autismo, que dá a capacidade à Tracy Austin de estar à frente de trinta mil espectadores e receber uma bola a 150 km/h e num instante decidir sem distrações. É um vazio absoluto que capacita isto e nós achámos por bem usar essa ideia como se fosse um superpoder. A infantilidade do Diamantino não o faz só querido, também lhe dá a capacidade de enfrentar as crises de hoje em dia”. A ingenuidade do jogador é o seu superpoder.

Filmes de Gabriel Abrantes e Duarte Coimbra na Semana da Crítica em Cannes

Quando Gabriel referencia fala nas crises de hoje em dia, está a falar do que se segue na vida do jogador depois dos relvados. Diamantino falha o seu momento cinematográfico dentro do seu filme — falha um penalty nos últimos minutos de uma final do Mundial, no seu último jogo. A carreira acaba sem “final feliz”, mas é após isso que Diamantino, Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt encontram o seu próprio filme, em direcção ao “final feliz”. Aquilo que torna a personagem mitológica nos relvados é o que também a faz ser uma boa pessoa face aos problemas que encontra na sua vida: “O drama não era falhar ou o sucesso do desporto. Os filmes de desporto são baseados nisso; interessava-nos o que acontece depois disso. O Diamantino aceita o mundo de braços abertos, sem questionar. Claro que tem as suas reacções emotivas, mas é uma pessoa muito aberta”.

Apesar do falhanço, Diamantino mantém-se como um símbolo nacional e é a partir disso que os realizadores constroem um filme de ficção científica misturado com comédia screwball em volta do nacionalismo — português e não só — e os seus símbolos. A vida pós-mitologia do jogo, lançada por uma entrevista na televisão, conduzida por Manuela Moura Guedes — inspirada na entrevista de Oprah Winfrey a Lance Armstrong –, em que Diamantino assume o desejo de ajudar os refugiados e adoptar uma criança.

A desconstrução da personagem não acontece e é esse um dos muitos encantos de “Diamantino”. A lenda dos relvados conduz a vida com a mesmo inocência e ingenuidade de outrora — os cachorrinhos que antes via nos estádios, estão agora no seu dia-a-dia. Continua a quebrar barreiras, a fintar algumas problemáticas que assolam o país e o mundo na actualidade. É uma fantasia que vence a própria realidade e que leva a trocar a ordem dos actores na pergunta, termina-se o filme sem se questionar se Diamantino é Cristiano Ronaldo, mas e se Cristiano Ronaldo fosse Diamantino?