Título: O Design que o Design não Vê
Autor: Mário Moura
Editora: Orfeu Negro
Páginas: 224
Preço: 17 €

O livro O Design que o Design não Vê é apresentado esta quarta-feira na livraria da Fundação Serralves, no Porto

Professor de design na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto Mário Moura distinguiu-se com uma intervenção crítica na blogosfera e como conferencista. Construiu a persona de crítico radical ou irreverente, porém de postura e estilo literário encenados à maneira duma estrela de palco com trejeitos exacerbados, num panorama de poucos comentadores ativos numa área em franco crescimento e afirmação. O Design que o Design não Vê é o seu segundo livro, depois de Design em Tempos de Crise (ed. Braço de Ferro, 2009, 95 pp.), e pode dizer-se que, publicado por uma pequena editora que tem dado consistente atenção a temas de modernidade estética numa perspetiva política claramente identificável, representa de alguma forma a confirmação do estatuto deste autor ou por ele claramente ambicionado: um “crítico como intelectual público” (p. 13). No pequeno e exíguo meio português, uma terra sem “gigantes”, figuras deste tipo ganham relevo — a própria literatura o demonstra, muito para lá da sanidade, como bem sabemos, helàs!

É bom que o livro apareça, tanto mais que uma compilação de escritos facilita sempre qualquer perspetiva diacrónica acerca do que foi sendo pensado, dito e escrito por alguém ao longo do tempo, ainda que, como Mário Moura admite na introdução, aqui trate de assuntos “que não pegaria se não fosse espicaçado” (p. 14; itálico meu). Aliás, o leitor encontrará ao longo destas páginas várias expressões autorreferenciais de idêntico calibre e vaidade, a mais hilariante das quais na p. 55 e logo na abertura dum capítulo: “Quando quero dar títulos a textos, não costumo pensar mais do que o necessário” — ou, na p. 160, “À primeira vista, era estranho e mórbido. Foi o que me levou a comprá-lo”. O seu blogue tem por título “The Ressabiator” e como desígnio “Se não podes pô-los a pensar uma vez, podes pô-los a pensar duas vezes”. Fica a dúvida se este plural corresponde a toda a gente (gente que, pelos vistos, não tem capacidade de pensar por si e por isso necessita de um catalisador caridoso), e se pensar é um exclusivo de uma certa linha ideológica, fora da qual nada existe.

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Em qualquer dos casos ficamos, caso se aceite tal tutela, subordinados a um intelectual que se propõe educar-nos, para nosso bem, supostamente — e que até insistirá caso a nossa burrice empedernida não se deixe domesticar pela sua generosidade. Mário Moura tem um contingente de adeptos fiéis, é sabido, o que também não surpreende à vista da confusão das mentalidades acelerada pelos desvarios da arte contemporânea e do jargão bacoco que a sustém e por um setor da universidade muito politizado e hiperativo, mas é desafiante lê-lo para tentar perceber não só o que diz mas também como teste à nossa capacidade de lê-lo sem palas próprias.

Significa isso, porém, aceitar interessar-nos — estoicamente — por um autor que na introdução ao seu livro de 2009 escreveu que “o design, sem se dar conta, serve a ideologia neoliberal”, que “é precisamente quando o design quer ser mais ativamente político que acaba por servir mais eficazmente a agenda neoliberal” e que o designer “tornou-se o exemplo acabado da subjetividade neoliberal” (pp. 11, 12); e que no posfácio desse mesmo Design em Tempos de Crise carregará nas mesmas tintas a ponto de concluir que “muitas das intenções políticas do design não passam de instâncias de filantro-capitalismo, a aplicação da lógica de mercado à resolução de problemas sociais, políticos e humanitários” (p. 88).

São postulados como estes que agora desembocam no ensaio principal (37 pp.) e que dá título ao presente livro. Embora não seja declarado como tal, trata-se do relatório de nomeação definitiva na FBAUP — “um documento que se entrega quatro anos e quatro meses depois do doutoramento com o objetivo de convencer a instituição a contratar-nos de vez. Até aí, estamos todos a prazo” (itálicos meus), como protesta no seu blogue. Se o design, “modalidade específica de saber enquanto poder” (p. 54), precisa de ser posto na ordem, depreende-se que o ensino do mesmo também e daí o tema escolhido para essa prova académica de especial relevância institucional. Moura lamenta: “É raro encontrar, na história do design gráfico, qualquer referência a questões raciais, tal como às de género ou de classe” (p. 28), sendo então necessário escalpelizar — suponho que na sala de aula — a sua “identidade”, denunciando a sua suposta universalidade e neutralidade, pois o design “não produz apenas progresso e modernidade, também participa da criação simbólica de periferias” (p. 14). Só incautos não perceberam ainda que “o design […] sofre inflexões de género, raça e classe” (p. 33), que “o começo do design como profissão autónoma se deve em parte à luta de classes” (p. 38), e que “por norma ainda é branco, masculino, heterossexual” (p. 54) — frase lapidar de grande efeito politicamente correto, que sela o relatório académico, aprovado com “ótima nota” (sic), que atribuiu a Mário Moura a almejada nomeação definitiva…

Todavia, nem no ensaio se dá prova histórica e diacrónica de que assim é, como a afirmação é um embuste, como demonstram — por exemplo — a respeitadíssima revista Print, que dá destaque de capa a “Jessica Hische and 9 other brilliant women ruliing type & lettering today” (número do verão de 2017), ou os corpos redactoriais da londrina Eye. The International Review of Graphic Design, da Design Issues publicada pela MIT Press ou dos Design Studies. The Interdisciplinary journal of design research, sediado em Oxford, para não ter de lembrar que qualquer generalização absoluta é por si mesma uma alarmante forma de discriminação e que à privacidade individual — qualquer que ela seja — não pode ser atribuído ad limine litis valor de exigível aptidão profissional. E atenção, “deixar de fora” (p. 35) Alda Rosa não colhe como caso de “segregação” em séries de primeiras monografias sobre designers portugueses.

Moura também torce o nariz a designers gráficos envolvidos em projetos de empreendedorismo social, por ver aí uma “precarização do trabalho através da ideia de que todos os indivíduos devem arriscar, inovar, empreender” (p. 64), a pecha da “sociedade neoliberalizada”, “com o seu programa de diminuição geral do papel do Estado, em particular das suas funções sociais, subcontratadas a operadores privados” (p. 67).  A pretexto de José Brandão — onde se fala de “nepotismo” e de uma sociedade na qual, “por baixo de uma fina camada de democracia, os velhos laços ainda sobrevivem” (p. 71; itálico meu) —, refere-se a “um cânone de figuras heroicas”, os tais “proto-designers” associados a um estilo de Estado, via António Ferro e Secretariado de Propaganda Nacional, a quem o autor atribui “conotações negativas” (p. 86), sem explicar quais possam ter sido, para adiante repudiar que a construção dessa tradição e legitimidade se faça com base “na ligação direta da modernidade ao Estado Novo” (p. 92). E embora critique o impulso historiográfico centrado em biografias e figuras individuais, vamos encontrá-lo mais adiante a tratar com especial apreço Paulo de Cantos (1892-1979), “figura caprichosa e inclassificável” (p. 155), autor de uma obra total que é “um panegírico excêntrico ao regime” de Salazar (p. 156)…

O livro ganha melhor impulso e interesse quando lemos sobre o photobox infantil de Alexis Peiry e Suzi Pilet ou sobre os guias de viagem de Chris Marker, temas em que a curiosidade e a biblioteca internacional de Mário Moura coligem informações preciosas, pouco disponíveis em contexto português, mas decresce de imediato, no capítulo final, intitulado “Periferias”. O texto “A periferia como objeto de design” é uma desordenada e desconexa deriva de assuntos superficialmente abordados, que parte da relação exterior-interior na arquitetura de Siza Vieira e Souto Moura para ilustrar a tradução ou a mediação centro-periferia no trabalho de designers em contextos “atrasados”, como Portugal, e deste modo “recriar na periferia as tensões entre o global e o local” (p. 216) — sejam elas quais forem… — com vista a “um modelo alternativo para uma teoria crítica do design em Portugal, com inspiração na teoria pós-colonial” (p. 215; itálicos meus).

É verdadeiramente a cereja em cima do bolo, exposto na vitrina dos delírios autocentrados de um professor universitário que literalmente remata o seu livro com a frase “O filme que me deixa mais saudades de Vila Real [de Trás-os-Montes] é o primeiro Star Wars. Não se vê ou percebe tão bem numa grande cidade. É uma história sem cidades, um futuro envelhecido porque periférico” (p. 222). Alguém que lhe explique que a carência compulsiva de aplausos não é boa conselheira…