Os irlandeses vão a votos esta sexta-feira para decidir se mantêm ou anulam a 8ª Emenda da sua Constituição, que proíbe o aborto em praticamente todos os casos e que faz da Irlanda o país com as leis mais estritas da União Europeia no que toca à interrupção voluntária da gravidez.

As sondagens indicam que aproximadamente 1 em cada 5 eleitores ainda está indeciso e que estes eleitores podem ser decisivos para determinar o futuro da 8ª Emenda da Constituição. Numa sondagem do Irish Times com a Ipsos, 44% dos inquiridos declararam que vão votar “Sim” — ou seja, a favor da anulação da 8ª Emenda e de uma nova lei do aborto — e 32% disseram que vão votar “Não”. No entanto, há 24% de inquiridos a responder que estão indecisos ou que não têm intenção de votar esta sexta-feira.

Caso o referendo resulte na anulação da 8ª Emenda, inicia-se o processo legislativo no Dáil Éireann, a câmara baixa do parlamento irlandês, a quem caberá redigir e aprovar uma hipotética futura lei do aborto.

O primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar, é a favor da despenalização do aborto. “Espero que um voto no Sim ajude a remover o estigma e a ajudar a apagar o legado de humilhação que existe na nossa sociedade”, disse.

De acordo com a atual lei do aborto irlandesa, em vigor desde 1983 após aprovação de 66,9% do eleitorado num referendo nacional, a vida de uma mulher grávida vale tanto quanto a vida de um feto. A lei foi entretanto alterada, passando a ser possível, desde 2013, fazer um aborto apenas em caso de risco de morte para a mãe. De resto, é o aborto é proibido, inclusive em casos de violação, malformação do feto ou risco de saúde para a mãe. As penas de prisão podem ir até aos 14 anos, uma vez que na Irlanda o aborto é legalmente equiparado ao homicídio.

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Na prática, há mulheres irlandesas a fazer abortos — mas fora do país. Só no Reino Unido, entre 1980 e 2016, um total de 168 703 mulheres irlandesas (ou com morada na Irlanda) interromperam a sua gravidez.

O resultado do referendo poderá servir também de barómetro para medir o grau de influência, por um lado, da Igreja Católica (que se opõe à legalização do aborto) e, por outro, dos partidos políticos, que em maioria são favoráveis à despenalização da IVG ou não obrigam os seus deputados a uma disciplina de voto.  Embora tenha tido um papel predominante na História e vida social e política do país, a Igreja Católica parece fazer valer cada vez menos as suas ideias junto da população do país.

Em 1983, 66,9% dos irlandeses votaram a favor da lei que abriu caminho à penalização do aborto. Agora, as sondagens dizem que apenas 32% vão votar “Não”. No entanto, há um número significativo de indecisos (ARTUR WIDAK/AFP/Getty Images)

A maior prova nesse sentido aconteceu em 2015, ano em que pela primeira vez um país aprovou em referendo nacional o casamento homossexual, com uma vitória de 62,07% do “Sim”. Além disso, o prestígio da Igreja Católica irlandesa tem sido fortemente abalado ao longo dos anos, com a revelação de escândalos de abusos sexuais a crianças e também da exploração sexual e laboral de mulheres que tiveram filhos foram do casamento, nas Magdalen Laundries.

O primeiro-ministro, Leo Varadkar, é favorável à despenalização do aborto. “Tem havido um legado de humilhação de diferentes maneiras”, disse, referindo como exemplo “o facto de 170 mil mulheres terem de viajar, por vezes sob secretismo, para outra jurisdição para terminarem as suas gravidezes”. “Espero que um voto no Sim ajude a remover o estigma e a ajudar a apagar o legado de humilhação que existe na nossa sociedade”, disse o primeiro-ministro e líder do Fine Gael, de centro-direita. Tanto no resto do executivo, como no partido que está no poder, a maior parte das figuras cimeiras são a favor do “Sim” no referendo — mas discordam quanto à abrangência e amplitude de uma hipotética futura lei do aborto.

O ministro da Saúde, Simon Harris, é a favor de que uma nova lei permita a IVG até às 12 semanas e que criminalize todos os abortos feitos após esse prazo.

A lei do aborto na Irlanda tem sido alvo de um intenso debate ao longo dos últimos anos, com o aparecimento de alguns casos que voltaram a trazer à tona este tema que divide a sociedade. Em 1992, a lei do aborto foi amplamente discutida, a propósito do “Caso X”, referente a uma rapariga de 14 anos que ficou grávida depois de ter sido violada. A jovem foi impedida pelo Procurador-Geral de deslocar-se ao Reino Unido para fazer um aborto. O caso foi para a justiça, culminando num veredito Supremo Tribunal onde foi dada razão a X, nome pela qual a jovem foi conhecida, por reserva de privacidade. Após o julgamento, a jovem acabou por ter um aborto espontâneo.

O “Caso X” acabou por resultar nas primeiras emendas à lei do aborto que resultou do referendo de 1983, passando a ser permitido viajar para fora do país com o fim de fazer um aborto e distribuir informação sobre opções para fazer uma IVG fora da Irlanda. Além disso, passou a ser possível fazer um aborto nos casos em que a vida — e não a saúde — da mulher estivesse em causa. Entre os cenários previstos como um risco para a vida foram incluídos casos de tendências suicidas.

Em 2012, foi polémico o caso de Savita Halappanavar, mulher de 31 anos a quem foi negado um aborto e que acabou por morrer devido a complicações com a sua gravidez (ANDREW COWIE/AFP/Getty Images)

Duas décadas depois do “Caso X”, o tema do aborto voltou a ser amplamente discutido na Irlanda. Em 2012, ocorreu o caso de Savita Halappanavar, mulher de 31 anos que foi hospitalizada após ter complicações com a sua gravidez, que já contava com 17 semanas. Depois de lhe ser diagnosticado um aborto espontâneo séptico, a mulher de 31 anos pediu que lhe fosse permitido fazer um aborto imediato. A opção foi-lhe negada pelos médicos, por receio de contrariarem a 8ª Emenda da Constituição. Porém, sete dias depois de ter dado entrada no hospital, Savita Halappanavar e o feto morreram com um choque séptico.

Este será o quarto referendo para alterar a legislação irlandesa sobre o aborto. O primeiro foi em 1983, quando 66,9% dos eleitores votaram a favor da penalização do aborto, equiparando a vida da mulher grávida à do feto. Os restantes foram em 1992 e 2002, foi votada a reversão da cláusula que admitia as tendências suicidas como um risco para a vida da mulher — e, desta forma, uma razão para o aborto ser autorizado. Em 1992, 65,35% votaram contra a exclusão dessa cláusula e 37,11% votaram a favor. Em 2002, perante a mesma proposta, a maioria voltou a votar contra. Porém, dessa vez, a margem foi muito menor, com 50,42% a favor da manutenção da cláusula para tendências positivas e 49,58% pela sua anulação, com apenas 10 556 votos a fazerem a diferença.