Chegou, enfim chegou. Depois de 12 anos de espera, com Carioca ainda a ressoar para quem o viu nesse distante 2006 (e a amargura de não ter tido Chico em Portugal quando em 2011 Chico saiu), o ídolo deu no Porto o primeiro de seis concertos da tour de Caravanas, que durante a próxima semana irá passar também por Lisboa. O público desmultiplicou-se em ovações. Ele, no seu jeito tímido, deu-nos a música que faz do poeta eterna canção.

Eram 21h40, mais dez minutos da hora apontada no bilhete, o Coliseu cheio e um primeiro “fora Temer” vindo das galerias que se perdeu com pouco eco, ainda de cortinas fechadas. Lá no palco, já exposto no seu fundo azul e com o trabalho cénico de Helio Eichbauer a sobressair em toda a sua simplicidade — cordas sobrepostas a ondular o ar e uma esfera armilar suspensa ao centro, a comandar a navegação — surgiu Chico, de pé, vestido de preto e violão na mão, escudado pela sua banda que tem na figura de maestro e compositor Luiz Cláudio Ramos.

Rebentaram os aplausos, abriram-se as caras de olhos arregaladas, ainda incrédulas, é mesmo Chico que ali está? A voz prova-o, mesmo que numa letra não sua – a única de todo o reportório – e em “Minha embaixada chegou”, samba do compositor Assis Valente popularizada por Carmen Miranda, é dada licença ao povo para entrar.

Continuamos no Carnaval, sem pausa, vem “Mambembe” e “Partido Alto”, esta com um “boa noite” discreto antes de subir o ritmo e um final com cadência de rap a carregar os versos:

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“Mas se alguém me desafia e bota a mãe no meio
Dou pernada a três por quatro e nem me despenteio
Que eu já tô de saco cheio”

Recados dados, sem se desarranjar na sua postura elegante, o compositor aproximou “Iolanda” (1984) de “Casualmente” (do seu último álbum) e cantou “Cuba, Havana”, o amigo Pablo Milanés e o baixista Jorge Helder – que teve dedo na composição do tema de Caravanas. Ao longo das 32 canções escolhidas, revistas durante quase duas horas, estabelecem-se elos recorrentes, agrupando-se músicas de tempos antagónicos mas que no cancioneiro de Chico se entrelaçam com a fluidez de uma obra que, sendo Rayuela, não se lê de forma linear.

E assim demos entrada a um novo momento de homenagem, “com letras para músicas que gostaria de ter composto”, referindo-se a Edu Lobo e “A Moça do Sonho”, sibilada num murmurinho na plateia, logo junto a “Retrato em branco e preto”, do músico que mais o influenciou, Tom Jobim. Ficámos com a impressão que o peito tão marcado se lhe embaralhou um pouco na língua, um quase inaudível tropeção que, na sua imperfeição, só torna Chico mais real – e mais amado.

Era hora de mudar a cor do fundo, vermelho dá corpo ao ressentimento de “Desaforos” (2017) e “Injuriado”, último tema composto para o álbum de 1998, As Cidades, e que o próprio o definiu, na altura, como um samba “pra ser cantado com cerveja em mesa de bar” (Homem, Wagner, Histórias de Canções Chico Buarque, 2009). Assim sentado de guitarra ao colo, e antes de Bia Paes Leme o acompanhar lindamente no “Dueto” que em Caravanas é interpretado por ele e por Clara Buarque, sua neta, deu-se um dos momentos mais caricatos da noite. “Está atrapalhando aqui um objecto”, e Chico mexia-se na cadeira, punha-se de pé enquanto o assistente tentava resolver o problema com os phones de retorno; “põe de lado, eu sei lá!”, dizia com um riso meio nervoso, ao que alguém aproveitou para lançar um novo “fora Temer!”. “Isso também…” respondeu baixinho entre dentes, para de imediato – e depois de um pedido de desculpas, como quem se recrimina pelo transtorno causado – soltar “A volta do malandro” e “Homenagem ao malandro”. A política sai cantada da sua voz e, nessa melodia soltinha, grita mais do que qualquer garganta ou imperativo.

A Ópera do Malandro prossegue com “Palavra de mulher”, em crescendo, com a guitarra e o piano a abrirem alas lentamente para a entrada dos restantes instrumentos que logo se voltam a recatar para “As Vitrines” (1981, do álbum Almanaque). No “Jogo de Bola” o pano vira verde e o esférico é chutado dos pés de um moleque para Chico Brown, que compôs com Chico “Massarandupió”, também de Caravanas: “era a praia onde os meus netos passavam o Verão e onde foi enterrado o cordão umbilical do meu neto chiquinho”.

Com “Outros Sonhos” evocou-se Carioca (esse tal que em 2006 motivou a última passagem do cantor por Portugal), e colando-se ao tema, pelo blues de Luiz Cláudio Ramos e pela musicalidade dos “ias” que se passeiam pela letra, fomos da “astronomia”, da “Maria” e do “soñé que tu me querias”, para o “Blues para a Bia”, com palmas do público que se entusiasmou ainda mais assim que se ouviu “A história de Lily Braun”, enredada com “A bela e a fera”, ambas d’ O Grande Circo Místico (musical apresentado em 1983 com banda sonora de Chico Buarque e Edu Lobo).

Acalmado o êxtase – e durante o concerto, o público, embalado pelo alinhamento, comportou-se como uma maré, que se começa a formar tenuemente no horizonte, rebenta em força na areia, e logo repete este passo sincronizado até ao “Tanto Mar” final (já lá vamos) – foi apenas o piano de João Rebouças e a voz de Chico que encheram o Coliseu com a delicadeza de “Todo o Sentimento” (composto em 1987 em parceria com o maestro e pianista Cristóvão Bastos, para Francisco, que também mereceu uma menção especial).

Na recta final, ainda antes dos dois encores, deram-se as duas maiores ovações da noite: a primeira em Tua Cantiga, cujos versos Quando teu coração suplicar/Ou quando teu capricho exigir/Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir encheram as redes sociais de críticas. Como pode Chico de Cecília, Joana Francesa, Carolina ou Renata Maria ser machista? O cantor responde, com duas flores na mão – uma branca e outra vermelha, o amor e o perdão lado a lado. Chico fala mais alto nas entrelinhas do que aquele que se inflama no “face” ou no “orkut”.

A segunda ovação chegou novamente como homenagem – mas esta foi a maior de todas. Com chapéu de sambista posto na cabeça, trouxe Grande Hotel e Wilson das Neves para o meio de nós, saudando-o com um “Saravá Chefia” e com uma dedicatória: “ele nos acompanhou em mais de 30 anos, em shows como este, em momentos tão felizes. Nosso show é dedicado a Wilson das Neves”. O som sagrado do seu baterista favorito, que morreu no ano passado com 81 anos, não se apagou.

Entre estes dois emocionados momentos ainda houve espaço para “Gota d’água”, que fez pairar novo burburinho pelo público, “Sabiá” – Tom Jobim outra vez e sempre – “As Caravanas”, fechando assim os temas do último álbum, e “Estação Derradeira” antes do ciclo se encerrar com o regresso aos acordes e versos de “Minha Embaixada chegou”. Nos encores que se seguiram, “Geni e o Zepelim” arrancou “wows”, aplausos e um maldita Geni cuspido pelo público com sílabas bem torneadas; “Futuros Amantes” falou de um amor adiado; e “Paratodos” discorreu sobre o Brasil que é Dorival, Cartola, Caetano, João Gilberto, Bethânia, Gal, Pixinguinha, tantos outros entre os quais António é soberano.

Chico retirou-se do primeiro de dois concertos no Porto aclamado, depois de finalizar com “Tanto Mar”. Guardámos um cravo para ele, foi bonita a festa, pá! e saímos estarrecidos do Coliseu, em passo lento a tropeçar nos abraços que se multiplicavam no público. Das colunas, o cutuco de Wilson das Neves a acompanhar-nos na hora da despedida. O samba é meu dom.