Nem sequer no cinema o falecido Ted Kennedy conheceu a atenção dada aos seus irmãos mais velhos Joseph, John e Robert, que têm sido tema — em especial o segundo — de incontáveis filmes, sem contar os telefilmes, séries e minisséries que a televisão lhes dedicou. Dos quatro, Ted foi o único que não teve uma morte violenta, embora tenha estado envolvido numa tragédia que lhe comprometeu quaisquer ambições que tivesse de ser presidente nos EUA. Um ano depois do assassinato de Robert, na noite de 18 de julho de 1969, quando os astronautas da Apolo 11 se preparavam para caminhar na Lua, o carro que Ted Kennedy guiava caiu à água de uma pequena ponte na ilha de Chappaquiddick. O senador sobreviveu mas a jovem Mary Jo Kopechne, antiga secretária de Robert, que o acompanhava e tinha estado na mesma festa que ele, ficou presa no carro e morreu afogada.

[Veja um documentário sobre a tragédia de Chappaquidick:]

https://youtu.be/SEOd7AOR6ic

Ted Kennedy só comunicou o sucedido às autoridades várias horas depois, na manhã seguinte, e o caso transformou-se num escândalo nacional. A investigação foi apressada e desajeitada, Kopechne foi enterrada sem ser autopsiada, Kennedy acabou por se declarar culpado de abandono do local de um acidente e saiu do tribunal com uma pena levíssima, dois meses de cadeia com pena suspensa e proibição de guiar por um ano. Muita gente comentou que não fosse ele ser quem era, se a família Kennedy não dominasse politicamente o estado do Massachussetts, onde se deu o acidente, e não tivesse lá tantas influências, o filho mais novo de Joe Kennedy não se teria safado tão facilmente. O senador continuou a ser eleito até morrer, em 2009, e a sua única tentativa para ser nomeado candidato do Partido Democrata à Casa Branca, em 1980, falhou.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja o “trailer” de “O Segredo dos Kennedy”:]

https://youtu.be/ayk_ZBgeB30

Há vários livros publicados sobre o incidente, mas nunca tinha sido feito nenhum filme até “O Segredo dos Kennedy”, de John Curran. Apenas Brian De Palma havia aludido ao caso em “Blow Out” (1981), embora num contexto ficcional. A fita de Curran não pertence à escola das que idealizam os Kennedy, nem segue a linha da desculpabilização do seu comportamento em Chappaquiddick, embora também não jogue a cartada da diabolização, característica dos inimigos e detratores da dinastia. É uma recriação sóbria e equilibrada dos acontecimentos, que não abdica de mostrar as tentativas de encobrimento e branqueamento feitas pelos Kennedy e pela sua equipa de fiéis (quando Ted telefona ao pai Joe para lhe comunicar o acidente, este, que havia tido um AVC pouco tempo antes, mumura-lhe “Alibi…”), a confusão interior e as falhas de caráter do senador, e a maneira como a vítima, Kopechne, é rapida e friamente menosprezada.

[Veja o realizador falar sobre o filme:]

Curran recusa sugerir que Ted (Jason Clarke) e Mary Jo (Kate Mara) tinham uma ligação (apesar de haver quem jure pelo contrário), dizendo que o que os juntava era a admiração por Bobby e a dor pela sua morte. E mostra como a sombra dos irmãos mortos pesava sobre Ted — quase como uma maldição pessoal –, bem como a rispidez com que o pai Joe (Bruce Dern) o tratava e a pouca consideração que tinha por ele, comparando-o desfavoravelmente a Joseph, John e Bobby. Há mesmo uma altura em que Ted pondera aproveitar a tragédia para se ver livre do fardo que carrega pelo pai, pelos pergaminhos políticos da família, pelo carisma e pela memória dos irmãos e pelas expectativas que nele depositam os seus leais apoiantes. Os mesmos que, à excepção do primo, Joe Gargan (Ed Helms), mexem cordelinhos e cobram favores para controlar os estragos e livrá-lo do escândalo. (O poder dos Kennedy estende-se até hoje: o distribuidor de “O Segredo dos Kennedy” disse que “pessoas muito poderosas” tinham tentado dissuadi-lo de lançar a fita).

[Veja a entrevista com o ator Jason Clarke:]

“O Segredo dos Kennedy” é o retrato de um político hesitante e errático posto perante um acontecimento que testa a sua consciência e a sua fibra, perdido no seu labirinto moral e sob a pressão de forças a que acaba por ceder, por falta de coragem e excesso de auto-piedade. A vontade de Ted fazer o que a situação lhe pede não consegue sobrepor-se ao que o seu ego, e uma noção distorcida das responsabilidades e do dever, lhe dizem. O filme percebe isso, mas não o desculpa nem o absolve. No papel principal, o australiano Jason Clarke prescinde de apostar numa grande parecença física com Ted Kennedy, personificando-o sem o imitar e conseguindo equilibrar e transmitir a indefinição, o sentido do seu estatuto privilegiado, o cansaço e a desorientação moral que o afligiam.

Tudo o resto sobre a tragédia dessa noite foi levado para a sepultura por Ted Kennedy em 2009, ou ficou para sempre esquecido nas águas rasas de Chappaquiddick, junto a uma pontezinha sem protecção que andou nas bocas do mundo durante algumas semanas no verão de 1969, quando o homem andou na Lua.