Título: 46750
Autores: João Pina (fotografia) e Vivianne Salles (poesia)
Editora: Tinta-da-China
Páginas: 150
Preço: 49,90 €

46750, que inclui fotografias vencedoras do Grande Prémio Estação Imagem 2017, está à venda desde maio. A apresentação acontecerá na Feira do Livro de Lisboa

Um livro, cada livro, qualquer livro é uma construção; e se um photobox o é ainda mais, um photobook sobre o Rio de Janeiro atual — uma cidade à beira dum abismo ou já em queda livre, como também pode ser dito — tem de ser percebido como uma construção arriscada, no fio da navalha, para usar uma expressão apropriada ao caso. Desde logo porque, para fotografar ou filmar em certos lugares, é necessário obter o consentimento do “Tráfico” — um estado paralelo –, como sucedeu à equipa que realizou há tempos um documentário sobre a pintora Maria Helena Vieira da Silva, que viveu uma temporada no bairro de Santa Teresa.

O astronómico número de homicídios que foi motivo de projeto e agora dá título a este foto-livro de João Pina, 46.750, é um dos índices do péssimo estado das coisas, um trágico nó-górdio indestrinçável que os humanos criaram num lugar paradisíaco, invulgarmente deslumbrante, que eles — ou uma boa parte deles — muito se têm esforçado por delapidar e poluir cronicamente e a bom ritmo, desde as faveladas matas dos caprichosos volumes geológicos às quase irrecuperáveis águas da baía da Guanabara. Vista de mais perto, a cidade maravilhosa revela-se uma selva infernal, uma bomba-relógio com tique-taque ativado. A distância ao bem pior México é muito mais curta do que parece, e o imbróglio de outras metrópoles sul-americanas está ali mesmo a um virar de esquina.

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A Europa tropical, sonhada por alguns esclarecidos no início do século XIX — e por outros ainda, um século depois –, sucumbiu, repercutindo fragilidades endémicas que ninguém foi capaz de curar ou suster e cujos efeitos alastraram até à expansão de uma criminalidade fortemente armada, instalada em vastos redutos labirínticos quase inexpugnáveis e escudada por um duplo sistema defensivo: populações pobres carentes de benesses que o Estado de facto não garante e se tornaram reféns e escudos humanos de criminosos impiedosos; e corrupção policial a todos os níveis da hierarquia.

Pode parecer estranho como se chegou a esta podridão sem remédio e todavia tão previsível, mas isso resulta em parte — avisa quem pensa no assunto — da imaturidade da sociedade brasileira para criar um Estado capaz de organizar e gerir um território descomunal, muito assimétrico, porém bastante rico em boas madeiras, solos agrícolas e jazigas minerais. Períodos de bonança financeira e de considerável prestígio internacional não foram usados para desenvolver reformas estruturais baseadas em diagnósticos e consensos políticos de grande alcance, antes para satisfazer frágeis ilusões de progresso e de justiça social, tão efémeras quanto o cume dos ciclos económicos. Justamente famoso pelos seus arquitectos de outrora, o Brasil — com raríssimas excepções locais, como a modelar Curitiba — tem, onde quer que se vá, gravíssimos problemas de urbanismo, saneamento básico, qualidade e segurança rodoviária (que contrasta com a prodigiosa beleza natural). E, obviamente, encontra-se muito aquém da consciência e das boas práticas de cidadania ambiental e de proteção da biodiversidade que tão determinantes vão ser para as próximas gerações e a que o país, por todos os motivos, não pode ficar indiferente.

Dois séculos de independência não produziram elites políticas de qualidade e uma cultura de autêntico e firme serviço público que dessem continuidade e impulso consistentes às instituições criadas pelo imperador D. Pedro (que vem sendo descoberto como o grande modernizador do país). Os culturalmente ricos, variados e intensos fluxos migratórios novecentistas, tendo levado para o Brasil empreendedorismo, artes, ofícios e ciências de primeira linha, também não compensaram a herança esclavagista, que persiste no serviço doméstico de negras ou mulatas de que ninguém prescinde verdadeiramente ou nos cearenses auxiliares de manutenção de condomínios prediais e, em geral, na muito abundante mão-de-obra indiferenciada, que não pôde prosseguir qualquer ensino técnico especializado que verdadeiramente a qualificasse.

A primeira imagem do livro de João Pina é a de uma estátua de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, sobre um enorme aparelho de som. Hoje, a música ali já não é a de “Malvadeza Durão” ou “Acender as velas” cantadas por José Kéti nos anos 1950, inclusive em filme de Nelson Pereira dos Santos, mas a do brutal e embrutecedor funk carioca. Na capa, entre os ombros duma mulher de cabelo alourado e alisado (sinal de novos e estranhos tempos), surge tatuado o Cristo Redentor, ícone da cidade tornado um objecto de comércio artístico massificado dirigido a turistas, como os néons e quadros seriais da artista Kakau Höfke.

É aliás ainda sob o signo religioso de um autocolante colado em espelho, com a mensagem “Cristo salva”, que entramos no domínio do terror e do sequestro social, numa cena em que crianças — explica legenda final — esperam a sua vez de receberem pipocas de traficantes numa favela “onde se regista uma ausência quase total de Estado” (p. 146). Logo na página dupla seguinte, à vista de outras crianças que voltam da escola, polícias militares com armas de guerra carregam com improviso o cadáver dum jovem que resistiu à ordem de prisão e foi fatalmente baleado. Imediatamente a seguir, quase face a face — mas separados por uma mulher que chora vendo futebol na televisão e pelo cadáver ensaguentado de mais uma vítima de gangues rivais –, um grupo de jovens traficantes de roupa desportiva e depois quatro polícias civis avançam com cautelas no dédalo da favela da Mangueira numa operação de apreensão de drogas. E imediatamente depois, uma panorâmica do principal cemitério da cidade, o de São João Baptista, em Botafogo.

O livro — já se vê — é perfeito na sua narrativa e organização gráfica, com o design a cargo de Ramon Pez e do próprio João Pina (e aproveito para dizer que, uma vez mais, a Gráfica Maiadouro dá prova da superior excelência do seu trabalho de impressão e acabamento). Fotografias mais chocantes — e há algumas — estão recolhidas em meias folhas dobradas, e é também atrás de meias folhas que nos surgem os poemas-comentário de Vivianne Salles, moradora da Cidade de Deus. Listas numéricas em colunas estreitas e altas de carateres minúsculos vão registando os óbitos de 2007 a 2016, pontuando e ritmando o livro. Trabalho pensado e bem feito sempre se reconhece num primeiro olhar.

Pina não esquece nem omite que muitas vítimas são polícias militares (“a polícia que mais morre no mundo”, no comentário da p. 146), afinal tão negros e pobres quanto os criminosos que combatem, num constante prender ou matar, para não morrer. Ele próprio correu riscos e precisou de paciente e hábil aproximação a intermediários que o levassem em segurança até bandidos dispostos a serem fotografados, como o grupo de sete jovens no Parque Royal (ilha do Governador, perto do aeroporto internacional), que visivelmente posa nas suas novas roupas “de marca” para uma posteridade que sabem não tardará, ou aqueloutro rapaz, o “Novinho”, que no Morro do Dendê (zona norte) alegremente joga matraquilhos de fuzil a tiracolo, como se nada fosse. Os disparos do fotógrafo português são certeiros, e não perdem perante os de Luiz Baltar, Jorge Quintão, Francisco Proner Ramos e o francês JR.

João Pina também presta atenção ao mais comum quotidiano das pessoas (“o futebol é tudo para mim”, num verso de Salles, p. 97a) aproximando o seu portefólio, por exemplo, de Rocinha: uma cidade orfã, de André Cypriano (2013), ou de Inside the Favelas, de Douglas Mayhew (2012). O seu livro, que quis ir ao osso das coisas, fica muitas léguas acima do seu quase contemporâneo português Hoje É Sempre Ontem: um Rio de Janeiro, de Daniel Blaufuks — também saído pela Tinta-da-China, em julho de 2013 –, em que frutos seccionados, flores exuberantes, arquitectura antiga “e sei lá quantas mais coisas agradáveis” são eleitos como motivos de um fotógrafo que, tão atento a outros holocaustos, quiçá por ele considerados mais nobres e prestigiantes, admite tão-só que “debaixo desta geografia prodigiosa existem várias camadas de bolor, de dificuldades, de amarguras, de perigos constantes” (da apresentação; itálico meu).

Quando em fevereiro de 2014 anunciou aos leitores de O Globo que ia abandonar a cidade, a correspondente semanal do Público Alexandra Lucas Coelho denunciou — além da “mesma podridão [do lixo] empilhada na berma” do morro do Cosme Velho, onde residiu quase três anos — “toda a morte, toda a violência, todo o abandono, esse deus-dará que milhões de cariocas conhecem desde que nasceram” e o facto de “o Rio ter sido tomado pela narrativa do triunfo”. Triunfo vão, afinal, como cada vez mais se vê e sabe. O livro de João Pina termina com uma fotografia de grupo de favelados assistindo do alto duma ladeira ao longínquo fogo de artifício que irrompe do Maracanã reabilitado, na abertura de Jogos Olímpicos de custos milionários, novos equipamentos desportivos de uso efémero e manutenção cara absorvendo dinheiros públicos por muitos anos adiante. Enfim, os marginalizados contemplando a sua própria condição no espectáculo dos outros, e a oportunidade perdida — aliás, com total ufanismo político — de qualificar mais e melhor a vida de tantos.

Sem alarde de panaceias miraculosas ou soluções políticas inevitavelmente demagógicas (atendendo à complexidade do tema abordado, o que inclui a ação da Igreja evangélica: v. fotos pp. 106-7, 108), antes valorizando a vida humana acima de tudo e com uma nota de compaixão e esperança na fotografia final, João Pina realizou obra notável que merece o nosso reconhecimento e gratidão. A França adiantou-se, expondo o seu trabalho. E Portugal, por que espera, afinal?

O livro de João Pina será apresentado na Feira do Livro de Lisboa, no próximo dia 10 de junho, às 19h, por Emília Tavares, investigadora de fotografia portuguesa do Museu Nacional de Arte Contemporânea.