Título: Intervir na Paisagem
Autor: Fernando Santos Pessoa (prefácio de Jorge Paiva)
Editora: Argumentum
Páginas: 192
Preço: 15 €

O livro Intervir na Paisagem, de Fernando Santos Pessoa, foi publicado pela editora Argumentum

Numa edição apoiada pela Universidade do Algarve, pela Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas e pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, Fernando Santos Pessoa, de 80 anos, colega, discípulo, editor e biógrafo de Gonçalo Ribeiro Teles, reúne uma trintena de artigos, ensaios e estudos breves sobre a Paisagem, esse tema de sempre mas que ganhou exposição inesperada com as catástrofes do verão passado e com o novo livro de Álvaro Domingues, Volta a Portugal (2017, 328 pp.), que ultrapassou em muito A Rua da Estrada. O problema é fazê-los parar! (2009) e Vida no Campo (2011), ou os menos conhecidos Ruinofilia. Percurso crítico pelas imagens das minas portuguesas (2014), “Património desamparado” (Revista Património, 2014, pp. 6-15), “Identidades” (Portugal Visto do Céu, 2009, pp. 12-13) ou “Post-modern without ever having been modern?” (News from Portugal: Homeland, Bienal de Arquitectura, Veneza, junho de 2014, p. 37).

A perspetiva do arquitecto paisagista há quatro décadas dedicado a parques e reservas naturais, política do ambiente e ecomuseologia — e com bibliografia assinalável, que também inclui a compilação dos escritos dispersos do precursor Francisco Caldeira Cabral (Fundamentos da Arquitectura Paisagista, 1993, 220 pp.) — diverge naturalmente da visão do geógrafo inquiridor imagético das 1.001 formas de apropriação urbana, suburbana e rural do território, que configuram hoje um feio retrato de desordenamento, tão incisivo, extensivo e quase irreversível que pode considerar-se já próximo de um ordenamento de novo tipo que faz sobressair conceitos como “novas territorialidades”, “território difuso” e “desconfinamento” para explicar décadas de irresponsabilidade e brutalidade (uma “coletiva miséria instintual” que o poeta Joaquim Manuel Magalhães denunciou precocemente em 1979, numa crónica incluída em Os Dois Crepúsculos, pp. 311-16, e anos depois, em “No litoral português”, in Um Pouco da Morte, 1989, pp. 187-95).

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O caos e a fealdade podem fascinar alguns — tornando-se até um ramo apreciado da literatura e do sarcasmo –, mas isso não resolve os danos causados em áreas vitais dum corpo nacional que é relativamente pequeno e de difícil regeneração se não houver uma firme cultura de boas práticas em diálogo com políticas públicas de sustentabilidade, biodiversidade e patrimonização dinâmica (p. 90) da paisagem, olhando para o pequeno, o médio e o longo prazo.

Bons e lúcidos livros como este podem ser publicados e até admirados em círculos pequenos e esclarecidos, mas sem uma aguda e firmemente disseminada consciência do real estado das coisas e do próprio valor da paisagem em si mesma — e a correspondente acção prática de todos os dias –, a gravidade de problemas continuamente acumulados há de pesar toneladas sobre a vida das gerações vindouras. Os problemas são já tantos e de tão variada ordem, que até a lucidez de alguns ambientalistas corre o risco de perder-se entre frases já gastas de tão batidas…

Fernando Santos Pessoa acredita que “só povos com amplo nível de cultura são capazes de ser exigentes com a sua qualidade de vida” (p. 131) e que “cada um de nós, em cada gesto e a cada momento, pode fazer alguma coisa para contrariar a caminhada suicidária do planeta” (p. 26). E por isso admite que o século XXI terá de ser de “reconstrução de equilíbrios” (p. 106), para evitar o “caminho dramático e inexorável, sem remédio, para a pobreza e para o deserto” (p. 113).

Como silvicultor, por regra do seu ofício, trabalha e pensa para várias gerações adiante, e por isso demoniza decisores políticos nacionais mas também bastante os autárquicos de nível cultural “paupérrimo” (p. 151), que estudam pouco e aprovam depressa e mal, fazendo até gato-sapato das leis vigentes, como a das “fundamentais” (p. 43) reservas agrícolas e ecológicas nacionais, dos planos de desenvolvimento municipal ou da Rede Natura 2000, todas elas “pouco mais que figuras de retórica” (p. 41) diante da avidez da indústria imobiliária que não pára de usurpar solos de qualidade agrícola.

Experiência profissional na ilha da Madeira e no Algarve, onde reside, deu-lhe um contacto muito vivo, direto e apurado com áreas especialmente maltratadas por décadas de erros urbanísticos e de frágil ou fragilizada estrutura verde urbana, senão de “laxismo e abandono no que se refere ao ordenamento do território” (p. 113). Com conhecimento de causa, repudia repetidamente a extinção do Corpo de Guardas Florestais primeiro e o fecho dos Serviços Florestais —  uma corporação tão prestigiada de alguns países, diz ele, que se tornou um ícone do próprio serviço público –, pugnando pela urgência de “refazer a [sua] dignidade (…) e dotá-los dos meios que se impõem”, “enquanto resta alguma memória do seu contributo patriótico” (2013, p. 50). E o mesmo para os Serviços de Extensão Rural, “fundamentais se houvesse a preocupação de renovar a agricultura e os agricultores” (2012, p. 29).

Além disso, estranha que parques e reservas naturais, “algumas delas consideradas reservas da biosfera, estejam sem director próprio” (2016, p. 49), do mesmo modo que se exaspera com a equivocada concepção e gestão de jardins públicos urbanos de “elevados custos de manutenção” (p. 86) e luxuosamente regados com água tratada para consumo doméstico, ou com a “palmeirite aguda” (p. 83), essa “virose epidérmica” (p. 67) que, com a complacência de viveiristas e floristas, substituiu no espaço público (ruas, alamedas, rotundas, parques…) ou privado (resorts, por exemplo) frondosas árvores autóctones de ornamento, como plátanos, freixos, figueiras-da-índia e ulmeiros, que melhoram a qualidade do ar urbano, ou de fruto, como laranjeiras, cerejeiras, damasqueiros, nespereiras e romãzeiras.

Santos Pessoa considera mesmo que é de “necessidade absoluta revermos a nossa política de jardins e parques públicos, tanto no que se refere à escolha das plantas como ao sistema de rega” (2009, p. 82; itálico meu), passando a reciclar águas usadas. Só é de lamentar que, neste livro, não leve a extremos de alarme um diagnóstico da “economia da água”, não apenas por causa de “somas astronómicas que chocariam a opinião pública” (p. 85), mas sobretudo antecipando o efeito das alterações climáticas já expectáveis para a região mediterrânica em que nos situamos — e que nos aproximarão a passos largos duma catástrofe “a pouca água potável de que poderemos dispor num futuro não muito distante” (p. 124), se não for feita uma rápida reconversão da estrutura verde urbana, a qual “deve constituir a prioridade dos planos de ordenamento do território” (p. 129; itálico meu). Em todo o caso, afirma desde já, as áreas verdes “tal como têm sido concebidas [representam] um encargo crescente” (ibid.), senão mesmo “insustentável para as autarquias” (p. 131; itálico meu).

“A paisagem urbana é um tema cada vez mais importante” (p. 100), mas o octogenário autor reconhece que nos “faltou uma arquitectura paisagista generalizada a todos os municípios que fosse capaz de influenciar autarcas e técnicos” (p. 96), como não fizemos “uma boa investigação” em horticultura e floricultura capaz de seleccionar espécies para “prados naturais resistentes e de fácil manutenção para situações urbanas” (p. 86). Logo nas Palavras Prévias (p. 11) critica os seus pares — alguns “de grande qualidade e enorme projecção” internacional — que ”nunca se deram muito ao trabalho de escrever, a não ser ocasionalmente em artigos de revistas ou para palestras” nem “têm feito suficiente defesa dos seus domínios de intervenção” (p. 70), reclamando mesmo que “nos seus locais de trabalho, e por todas as formas de comunicação, não se cansem de impor a perspetiva de que o espaço exterior é do domínio da arquitetura paisagista” (p. 72). Mas o autor que não se ilude com futuros risonhos também sabe que as exigências colocadas às novas gerações de arquitetos paisagistas “só serão concretizadas se a formação académica for conduzida por professores muito qualificados e com tempo suficiente” — que o atual processo de Bolonha impede — para transmitir a “sabedoria global, científica, técnica, cultural, artística, que é património de anteriores gerações de profissionais” (pp. 105-6), nem podem ser atendidas por “jardineiros feitos à presa” (p. 68).

Paisagem global e urbanismo rural integrado são conceitos-pilares desta abordagem, que também reconhece tanto a lição ancestral do regadio de jardins pelas canats da Pérsia, mantidas no Irão atual, das villae romanas ou do “riquíssimo pomar de sequeiro do Algarve” (p. 65), como é devedora do visionarismo do muito extraordinário Frederick Olmsted (1822-1902) e de outros arquitetos paisagistas que se “aperceberam cedo de como as cidades se iriam tornar desagradáveis para os seus habitantes (…) e propuseram os primeiros planos de cidades com ampla implantação da Natureza” (p. 117). E muito naturalmente reconhece o ideário de Georges Henri Rivière (1897-1965), pai da ecomuseologia europeia, cuja missão pedagógica e conservadora-gestora inspirou profundamente muitos projetos e alguns outros escritos de Fernando Santos Pereira — incluídos em dois livros hoje só disponíveis em bibliotecas e alfarrabistas: Reflexões sobre Ecomuseologia (2001) e Ecologia e Território. Regionalização, desenvolvimento, ordenamento do território numa perspectiva ecológica (1985), publicados pela Afrontamento, do Porto, quando o editor José Carlos Costa Marques aí desempenhou um papel determinante na divulgação de ideias e práticas ambientalistas numa perspetiva muito contemporânea.

Leitores deste Intervir na Paisagem compreenderão melhor este livro e o empenho do seu autor na luta contra a desertificação do interior conhecendo os volumes acabados de referir, onde Fernando Santos Pereira defende, por exemplo, que “os parques naturais poderiam ter constituído uma rede extraordinária de museus regionais”, ditos de interpretação, e onde são pormenorizados projetos desse tipo para a Arrábida, a Serra da Estrela, o Alvão, as Terras de Barroso, a Terra Fria, a Ria Formosa, Castro Marim, os estuários dos rios Tejo e Sado, entre outros.

A desertificação é, de resto, um problema muito caro a Santos Pereira, em especial a do Algarve interior (barrocal e serra), que ele conhece particularmente bem. “A morte da paisagem no Algarve” (2006) — que inclui a do litoral — é, a todos os títulos, um dos textos mais incisivos desta publicação, porque ali se condensam e exibem muitos dos nossos erros acumulados, e nunca travados, na gestão patrimonial do território.

O livro acaba com uma carta ao primeiro-ministro António Costa, datada de 2017. Ainda que não seja revelada a data precisa deste documento (antes ou depois de junho, antes ou depois de outubro), o que pareceria essencial por razões óbvias, a verdade é que a queixa e o protesto de Fernando Santos Pereira se dirige sobretudo à secundarização do Ministério do Ambiente, cuja política “eficaz e convicta” exige um ministro “qualificado” e com “sensibilidade” que “não seja um mero executor de medidas desgarradas e anti-ecológicas” (itálico meu) e à “menorização da política do Ambiente”, traduzida na situação orgânica do Instituto de Conservação da Natureza ainda enfiado no Ministério da Agricultura e das Florestas, com as ditas abusivamente à ilharga, e com as áreas protegidas sujeitas a uma dupla e inoperante tutela. “Chega a ser estranho” — afirma Fernando Santos Pereira, com uma autoridade de décadas e uma declarada simpatia política pela geringonça — “que tendo o governo a que o Senhor Primeiro-Ministro preside feito tantas reversões das asneiras cometidas pelo anterior governo de direita (…) continue a pactuar com esta situação anómala e lesiva dos mais profundos interesses nacionais que são a integridade ecológica e ambiental do espaço nacional” (p. 186; itálicos meus). Por algum motivo será, certamente.