Pouca gente terá tido duas décadas de vida tão atribuladas e polémicas quanto as de Jahseh Dwayne Onfroy. O norte-americano, nascido na Florida e conhecido na música como XXXTentacion, viveu uma espécie de montanha russa de feitos. Por um lado, atingiu uma popularidade enorme enquanto rapper: o seu segundo álbum, editado este ano, tornou-se o mais ouvido dos Estados Unidos da América na semana em que saiu (os dados são do ranking “200” da empresa Billboard, que semanalmente agrega vendas físicas, vendas digitais e audições em streaming). Por outro, “XXX” esteve preso e foi acusado de múltiplos crimes. Entre eles, os de assalto à mão armada e os de agressões e imposição de cativeiro forçado a uma mulher, que seria sua namorada e estaria grávida.

‘Rapper’ norte-americano XXXTentacion morto após ter sido baleado na Florida

Todas estas polémicas (e não foram as únicas em que o rapper esteve envolvido) surgiram antes de XXXTentacion completar sequer 21 anos, idade que o tornaria adulto no seu país. Jahseh Onfroy já não atingirá a maioridade: esta segunda-feira, foi assassinado a tiro à porta de uma loja de motos em Deerfield Beach, uma localidade a norte de Miami (onde vivia).

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Muitos dos seus pares já reagiram: o músico Kanye West revelou que nunca lhe chegou a dizer “o quanto ele me inspirou enquanto esteve aqui” e agradeceu-lhe por “existir”, o DJ e produtor de música eletrónica Steve Aoki afirmou que a morte é “de partir o coração” porque XXXTentación era “demasiado novo e tinha demasiado talento”, o rapper J. Cole falou em alguém que tinha “um enorme talento, um potencial sem limites e um forte desejo de se tornar melhor pessoa” e o DJ e produtor musical Diplo escreveu que o “amava” e que Jahseh Onfroy era “um génio, um verdadeiro artista”, que “criava as suas próprias regras” e que “tinha as suas falhas mas estava disposto a pagar pelos seus pecados”. Porém, nem no meio musical o rapper era unânime, face às acusações de que foi alvo ao longo da adolescência e juventude.

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As acusações da namorada: das primeiras bofetadas às ameaças de morte

A maior polémica em que XXXTentacion esteve envolvido foi, indiscutivelmente, as acusações de violência doméstica feitas por uma ex-namorada, que alegou ter vivido um clima de terror enquanto namorava com o rapper. A mulher em questão, Geneva Ayala, processou Jahseh Dwayne Onfroy e alegou ter sido agredida por este quando estava grávida. XXXTentacion negou, declarando-se inocente. Disse ainda que a mulher em questão foi agredida por outra pessoa e num período em que não estava grávida.

No depoimento em que contava a sua versão do sucedido (de 142 páginas), a que a revista digital Pitchfork teve acesso, Geneva Ayala revelou que os dois conheceram-se online. O primeiro encontro foi num cinema. Seguiu-se um novo encontro num concerto de XXXTentacion (que tinha então 19 anos), em maio de 2016. Foi aí que o rapper convidou a jovem, que viria a tornar-se sua namorada, para uma festa que organizou em sua casa, no norte de Miami. Já no interior da casa, disse-lhe que tinha gostado dela e convidou-a a ir viver com ele.

Os dois passaram a morar juntos e o primeiro episódio de violência ter-se-á dado duas semanas depois: Geneva Ayala alegou que foi esbofeteada por XXXTentacion (que lhe partiu também o iPhone) por ter elogiado um amigo do rapper à sua frente. Horas depois, este ter-lhe-á aparecido com um longo garfo de churrasco e um longo garfo de cozinha, perguntando-lhe qual escolhia, porque ia inserir um deles na sua vagina. XXXTentacion não terá chegado a penetrá-la com o objeto mas, segundo conta Ayala, os episódios de violência começaram a tornar-se regulares a partir daí.

E terão sido vários. Menos de dois meses depois, as ameaças de morte terão começado a tornar-se diárias. Os ciúmes aumentaram e bastava à então namorada cantar o verso de um convidado de XXXTentacion num dos seus temas para espoletar uma cena de violência, alegou esta. Numa dessas cenas, Geneva Ayala contou que XXXTentacion deu-lhe socos, pisou-a e levou-a para a casa de banho, onde continuou a pontapeá-la e a esmurrá-la. “Também queria cortar a minha língua porque estava a cantar a canção”, revelou no depoimento. Ayala disse que fugiu para a rua e o rapper pregou-lhe uma rasteira, fazendo com que batesse com a cabeça no chão. Segundo diz, terá ficado com olhos negros, um inchaço na nuca, marcas de arranhões e hematomas — um deles, no tornozelo, onde disse ter sido pisada.

A ex-namorada de XXXTentacion disse também ter sido agredida com cabides de plástico. “Partiu uns bons 30 cabides na minha perna”, apontou a alegada vítima, que também disse ter sido forçada pelo rapper a ficar com a cabeça debaixo de água na banheira durante algum tempo. XXXTentacion foi detido ainda nesse verão — em agosto, por causa de um outro caso judicial. Quando foi libertado, os dois voltaram a viver juntos e Jahseh Dwayne Onfroy ter-lhe-á encostado uma faca e “estrangulado um pouco”, dizendo que “sabia” que ela o tinha traído. Geneva Ayala confessou a traição, depois de XXXTentacion a ter levado para o exterior da casa e a ter ameaçado com uma garrafa de cerveja.

Geneva Ayala contou que, já em outubro, descobriu que estava grávida. A gravidez tinha sido “planeada” pelos dois, alegou. Um dia, XXXTentacion terá ameaçado matar o homem com quem ela o havia traído, mas também ameaçou matar a então namorada e o bebé. Agressões múltiplas terão feito com que a ex-namorada do rapper, segundo conta esta, tenha ficado temporariamente sem visão.

No apartamento em que viviam, moraria mais gente. A mulher terá pedido aos restantes habitantes (amigos do rapper) para a deixarem ir ao hospital. Num primeiro momento, o rapper ter-se-á oposto, dizendo que só poderia ir quando a sua cara estivesse sem marcas de agressões, para a polícia não desconfiar. Depois, tê-la-á levado para um apartamento em que a mulher nunca tinha estado, exigindo-lhe que usasse um casaco com carapuço e óculos de sol durante a viagem, o que esta fez. O telefone foi-lhe confiscado e a mulher terá ficado retida no apartamento durante dois dias. Depois, terá conseguido fugir e ligou a um ex-namorado. A mãe deste terá então levado a alegada vítima à esquadra policial de Miami, onde esta contou a sua versão do sucedido.

Haveriam “múltiplos indícios” a servir de suporte às alegações, que incluíam testemunhas, “51 páginas de relatórios médicos que se presume que confirmassem as lesões da vítima” (porque foram apresentados por esta) e “gravações de áudio que incriminariam” XXXTentacion, escrevia o órgão nova-iorquino Complex há cerca de um ano. O rapper não chegou a ser nem condenado nem inocentado em vida. Porém, o registo criminal estendia-se a outros episódios.

Um assalto à mão armada e o ataque a um rapaz gay

O que separou temporariamente XXXTentacion (cujo comportamento violento começou logo aos seis anos, quando tentou esfaquear um homem que estava a atacar a sua mãe) e a sua namorada de então, que denunciou abusos que poderiam resultar numa pena de até 30 anos de prisão para o rapper (se condenado pelos crimes de que foi indiciado), não foram os ciúmes nem as primeiras agressões, mas uma detenção em agosto de 2016.

Jahseh Dwayne Onfroy foi acusado de assalto com arma de fogo, depois de ter invadido com outras três pessoas o apartamento de um jornalista, Che Thomas. Depois de ameaçar espancar o morador com uma pistola, o rapper fugiu com um iPad, um iPhone, uma Playstation e vinte dólares. XXXTentacion viria a ser detido em Orlando e transferido depois para a prisão de Orange County. Registe-se que o rapper já tinha passado por centros de detenção para jovens, por posse de arma de fogo, assaltos à mão armada, resistência a detenção e posse de comprimidos Xanax. Num dos centros, agrediu violentamente um outro rapaz, por ter feito “qualquer coisa gay”.

A fiança do assalto que o fez ser detido em 2016, já com 19 anos, foi de 10 mil dólares e, enquanto aguardava julgamento, XXXTentacion voltou a ser detido devido às denúncias de violência doméstica. O rapper, que escrevia de forma crua sobre a realidade que viveu, conseguiu um acordo judicial para evitar a detenção pelo assalto. A juventude (ainda era menor) de XXXTentacion foi um dos fatores que levou o juiz que avaliou o caso a libertá-lo, impondo-lhe um período probatório de seis anos em que teria de cumprir várias exigências dos tribunais. Entre elas estavam não quebrar nenhuma lei, não possuir armas, não se associar com pessoas relacionadas atividades criminais e não visitar locais onde se consumam drogas. Se o conseguisse fazer, as acusações desse processo desapareceriam e o seu registo criminal ficava limpo.

Um vídeo incriminatório e um vídeo premonitório

Novas acusações de agressões do rapper a mulheres surgiram há três meses, quando apareceu na internet um vídeo que mostrava XXXTentacion (visivelmente mais novo nas imagens) a bater na cabeça de uma vítima num alegado ataque. A vítima escreveu nas redes sociais que “temeu terrivelmente pela [sua] vida” quando o incidente aconteceu e que foi por isso que não o denunciou. E acrescentou que não era ela a autora da publicação das imagens. Em resposta, Jahseh Dwayne Onfroy decidiu processá-la por calúnia e difamação. O processo caiu quando a mulher alterou a sua versão da história, dizendo que os dois estavam “a brincar”.

O comportamento de XXXTentacion levou, inclusivamente, a plataforma de streaming Spotify a deixar de promover a música do rapper em playlists recentes do serviço sueco. A decisão, contudo, seria revertida. A explicação oficial para a reversão foi esta: “O nosso papel não é regular os artistas. Portanto, vamos deixar de implementar uma política que se centre na conduta” destes. É de notar que a reversão aconteceu depois do também rapper Kendrick Lamar ter ameaçado retirar a sua música da plataforma, por ter entendido que esta política da empresa sueca (que não retirou dos seus serviços a música dos artistas, apenas deixou de as promover em playlists que sugere aos utilizadores) era uma forma de censura, direcionada apenas aos artistas negros que fazem hip hop e não a outros, com os mesmos comportamentos.

O rapper americano, que começou a tornar-se popular no serviço de streaming (gratuito) Soundcloud e que em 2017 anunciou que ia deixar a música porque estava farto do “ódio” que lhe era dirigido (acabou por não o fazer), deixou uma mensagem ainda em vida que está a ser muito difundida nas redes sociais. Num vídeo gravado e publicado na sua conta de Instagram, XXXTentacion dizia:

“Se o pior acontecer, e eu tiver uma morte trágica ou algo assim e não puder alcançar os meus sonhos, quero saber pelo menos que os miúdos perceberam a minha mensagem. Que conseguiram fazer algo de bom para eles a partir dela e que consigam uma vida boa.”

“Se eu estiver para morrer ou me tornar um fardo, quero ter a certeza que a minha vida fez pelo menos cinco milhões de crianças felizes, que elas encontraram algum tipo de respostas na minha vida mesmo com tudo o que de negativo envolve o meu nome, mesmo com as coisas más que as pessoas dizem de mim”, apontava o rapper.

XXXTentacion acrescentava: “Não deixem a depressão definir-vos. Não deixem o vosso corpor definir a vossa alma, deixem a vossa alma encontrar o vosso corpo. A vossa mente não tem limites. Valem muito mais do que imaginam. Tudo o que têm de fazer é sonhar e querer atingir esse sonho, ter a força necessária para isso.” Os méritos da música de XXXTentacion, o efeito que ela tem nos jovens e o que diz de uma sociedade que a consome de forma massiva, é algo que tem vindo a ser discutido nos media. Por exemplo, pelo The Guardian, The Atlantic, e The New York Times