“É difícil sobreviver no meio do furacão”. Este poderia ser um dos muitos títulos de uma eventual crónica do Marrocos-Portugal no Campeonato do Mundo de 1986 — o último jogo entre as duas seleções que se voltam a encontrar esta quarta-feira, 32 anos depois. Como já terá percebido, vamos puxar o filme do tempo atrás para recordar esses 90 minutos de pesadelo, mas também para perceber de que ventos se fez esse furacão chamado Saltilho. Um furacão que começou com um apuramento conseguido aos trambolhões — mas a essa parte até já estamos habituados. O pior, muito pior, viria depois.

Começou com uma viagem de 14 horas e três escalas até ao México, continuou com António Veloso a ser recambiado para casa depois de acusar positivo no controlo de doping, agravou-se com a guerra aberta entre jogadores e Federação Portuguesa de Futebol a propósito de prémios e remunerações com publicidade. Afinal de contas, Portugal estava num Mundial 20 anos depois e não faltavam marcas a querer patrocinar a epopeia da Seleção. A FPF não aceitou as pretensões dos 22 convocados e o caldo entornou: os jogadores chegaram a vestir as camisolas de treino do avesso para esconder a marca da qual não recebiam um tostão. “A Federação fez tábua rasa de tudo o que tinha sido acordado antes com os jogadores. Apresentou o que entendia, sem discussão ou respeito algum pelo que tinha sido falado connosco”, recorda Rui Águas ao Observador.

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Quando se pensava que nada podia piorar, o campo onde a equipa treinava era… inclinado. “Notava-se bem, especialmente para quem jogava a subir. Isto é importante para caracterizar a desorganização e o amadorismo que existia”, remata Rui Águas. Como se não bastasse, Portugal não conseguiu com quem jogar no estágio de preparação. Resultado: teve de alinhar contra cozinheiros e empregados de mesa de um restaurante no México (com o resultado final a ser uns expressivos… 11-0). “Disseram que fizemos greve, mas nunca fizemos. A nossa única luta era por condições que nunca tivemos, do início ao fim. E essa luta está a dar resultados hoje. As condições que existem agora vêm daquele Mundial de 86, que foi negativo em tudo o que envolveu a nossa Seleção”, conta ao Observador Jaime Magalhães, outro dos 22 jogadores portugueses presentes em Saltilho.

Do arranjinho para empatar aos jogadores que corriam como lebres

Contra todas as expectativas, o arranque na prova sorriu à Seleção Nacional. Vitória por 1-0 contra a favorita Inglaterra — um eterno obrigado a Carlos Manuel, que já tinha sido decisivo no apuramento, contra a Alemanha. O Mundial prometia, não era? Pois, não. O jogo seguinte ditou a derrota com a Polónia (1-0) e incendiou definitivamente Saltilho. “O ambiente piorou muito, não estávamos estáveis e não havia razões para nos sentirmos confiantes”, lembra Rui Águas. E foi assim que se chegou ao tal jogo com Marrocos.

Portugal até dependia de si para seguir em frente — um empate colocava a equipa de José Torres nos oitavos de final. Na verdade, o empate até servia às duas equipas. Daí que o técnico marroquino, o brasileiro José Faria, tenha proposto o arranjinho a Portugal. “Dizia-se que o treinador tinha falado com alguém de Portugal no sentido de haver um resultado que servisse aos dois, que era o empate. Até eu, que não sou nada de meandros e que costumo ser o último a saber das coisas, ouvi essa história”, relata Rui Águas. “Mas de uma coisa tenho a certeza: ninguém alinhou nisso”.

José Torres mudou o onze, lançando a dupla de ataque Futre-Fernando Gomes, que tinha acabado de ser campeã no FC Porto. Nada feito. Aos 26 minutos, Portugal já levava dois golos sem resposta — um bis de Khairi. Ao intervalo, José Torres ainda tentou animar as hostes, dizendo que a equipa das quinas podia repetir o que o adversário tinha feito e dar a volta ao texto, mas o massacre continuou na segunda parte: Krimau aproveitou um contra-ataque e fez o 3-0. É certo que Portugal ainda reduziria com um bonito chapéu de Diamantino. Bonito mas irrelevante — a Seleção Nacional acabava vergada aos pés de Marrocos, que se tornava a primeira formação africana a marcar presença nos oitavos de final de um Campeonato do Mundo.

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Terá havido algum facilitismo? Jaime Magalhães admite que “pode ter sido isso”, mas Álvaro Magalhães foi muito mais longe, em entrevista ao Observador em 2014. “Se calhar foi uma falta de respeito para com Marrocos. Não tinham prestígio e isso às vezes também ajuda. Talvez achássemos que fosse mais fácil”. Rui Águas não concorda. “Estávamos sem confiança depois da derrota com a Polónia. E Marrocos tinha bons avançados, que jogavam em França. Estávamos alertados para isso, embora nesse tempo a análise dos adversários fosse muito diferente do que é hoje. Não me recordo de alguém nos falar da forma de jogar dos adversários, o que fosse. O que hoje é completamente esmiuçado, naquela altura não era. Sabíamos o nome de alguns jogadores, nada mais”.

O Saltillo que se deu para tantos problemas

Jaime Magalhães acredita que “este é daqueles jogos em que podíamos estar lá até à meia-noite, que a bola não entrava”. Oportunidades não faltaram, relata o antigo extremo da Seleção, mas o pior mesmo era concretizá-las. “Eles foram lá duas vezes e fizeram dois golos, logo na primeira parte. Ainda recuperámos, marcámos um golo, mas eles continuaram com a sorte do jogo. Tinham uma excelente equipa, a temperatura estava elevada e eles adaptaram-se melhor. Corriam muito, pareciam umas lebres… “.

Hoje, tal como Portugal em 1986, Marrocos está de volta a um Mundial 20 anos depois. Mas esse é um dos poucos pontos de contacto com aquele fatídico dia 11 de junho. Pelo menos é o que se espera por cá. O pedido que sai para a Rússia é dito em uníssono: “Portugal, por favor não repitas o que fizeste em 1986!!!”.