Cinco minutos depois do apito final do jogo da seleção em Moscovo, começava a tocar a campainha dos Passos Perdidos, na Assembleia da República, em Lisboa. Em vez de encher aos poucos, o plenário preencheu-se quase de uma vez, com os deputados a chegarem quase todos à mesma hora — muitos tinham estado a assistir ao jogo — para o debate quinzenal com o primeiro-ministro. Sorrisos número 7 (o do capitão da seleção) na cara e algum alívio à mistura e António Costa lá subia ao púlpito para atirar sobre a fervura, que vinha do jogo, o gelo da “Europa, quadro financeiro plurianual e plano nacional de investimentos”. Prognósticos? Passemos antes ao fim deste jogo: os problemas maiores vieram de dentro da própria equipa. Tal como na seleção nacional de futebol.

Se Cristiano Ronaldo precisou de apenas quatro minutos de jogo para levantar o país num festejo, no debate quinzenal foram necessários cerca de 50 para aparecer a primeira situação de perigo, por Catarina Martins do BE, a primeira a trazer aos debate os temas incómodos para o Governo: confrontá-lo com a posição dos Estados Unidos sobre os imigrantes, os despejos e o encerramento de balcões da Caixa Geral de Depósitos. Antes dela, Costa tinha já sido questionado por Fernando Negrão, do PSD. Mas este foi aquele tipo de jogo em que não foi o adversário que criou os principais problemas à equipa. Olhemos então para os minutos decisivos desta partida parlamentar que durou 94 minutos (apenas menos um do que o jogo com Marrocos):

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Ronaldo levanta o país, Costa entusiasma pouco

04’ – O jogo tinha começado há instantes e Portugal já estava instalado na grande área de Marrocos, com um canto para a seleção nacional. Canto batido curto. E o passe, diretamente dos pés de João Moutinho. A bola, cruzada do lado direito do campo, parecia teleguiada, só via a cabeça de Cristiano Ronaldo. Quatro minutos de jogo, o capitão parece uma ilha na área do adversário, baixa-se um pouco, cabeceia. As redes da baliza marroquina abanam. Golo de Portugal! O país aos gritos e a seleção na frente do marcador.

Na outra partida, em Lisboa, que haveria de começar colada ao apito final do jogo de Moscovo, Costa era o primeiro a pisar o relvado. O discurso era virado para Bruxelas. Tema: fundos comunitários, escolha do executivo. O primeiro-ministro dizia-se “satisfeito” com o “consenso” da União Europeia mas também apontava críticas a verbas que ficam “aquém do necessário” para as reformas internas que é preciso fazer. E pedia “compromissos alargados” para que possa sentar-se no Conselho Europeu com o respaldo de uma “maioria de dois terços” em casa.

Marrocos dispara à baliza, Negrão atira por cima

22’ – Começou morna, a partida parlamentar, mas a bola já estava do lado do adversário e era o tempo de Fernando Negrão pegar no jogo. O adversário acabava de entrar em campo, estava fresco, podia criar perigo à equipa da casa — mas os disparos acertaram sempre muito longe do alvo.

O líder da bancada do PSD queria uma “palavra firme” do Governo português na rejeição do pacote orçamental apresentado por Bruxelas para os próximos anos, tentava apontar contradições na discussão — porque há mais território marítimo e menos apoios europeus nesse dossier —, até pedia ao executivo para “evitar cortes duros” da Comissão Europeia.

Mas Costa conseguiu manter a pressão afastada da sua área. Primeiro, porque a cada investida do PSD o primeiro-ministro respondia com apelos a uma “maioria de dois terços” no Parlamento. Segundo, porque sublinhava que a proposta que está em cima da mesa é ainda um esboço daquilo que será o quadro plurianual da União Europeia. Terceiro, porque Costa tem um historial para mostrar ao adversário social-democrata: é que anda há meses a dizer publicamente que, como está, o orçamento não merece senão a rejeição do Governo português.

Com uma estratégia de pressão no campo do adversário, o primeiro-ministro conseguia, até, devolver a pressão ao outro lado. Por exemplo, empurrou responsabilidades para o PSD ao referir que o consenso em matéria de fundos é importante, até para “romper com o passado em que as decisões de investimento ficaram demasiado dependentes de ciclos políticos, com custos de atraso e de oportunidades perdidas para o país”.

Raphael Guerreiro arranhado. Já Costa continuava sem marcas de guerra

50′ – Catarina Martins entra no jogo e começa imediatamente a correr pelo campo, não propriamente no sentido da equipa que costuma ajudar neste terreno de jogo. Diretamente, dispara com um desafio num ponto diplomaticamente difícil para o Governo português: os Estados Unidos e a política de imigração de Donald Trump que, diz a líder do Bloco de Esquerda, está a promover o “enjaulamento literal de crianças”. “Mande chamar o embaixador dos EUA para lhe dar conta do repudio de Portugal”, desafiou. Costa desviou-se da bola e preferiu não responder ao repto. Disse apenas que defender a  “separação de menores dos seus pais choca qualquer um” e defender essa medida é “absolutamente inadmissível e nada o pode justificar, seja nos EUA seja em qualquer outra fronteira, é inaceitável”.

A este minuto do outro jogo, o de Portugal/Marrocos, já Raphael Guerreiro levantava a camisola (aos 26′) para mostrar as marcas da guerra — que já ia dura — das diversas disputas de bola com o adversário marroquino. Costa ainda não tinha nenhuma para mostrar, ainda assim, foi de Catarina Martins que voltou a ter de defender-se quando a líder do Bloco de Esquerda pediu ao Governo intervenção do fecho de balcões da Caixa Geral de Depósitos pelo país. “Está a ser feito nas costas das populações, dos autarcas e do Parlamento”. O primeiro-ministro respondia que o Governo “não intervém nem intervirá” e a bloquista continuava: “Como podemos ter uma política para o interior se abdicarmos da intervenção do Estado como acionista” da Caixa?

Ainda teve tempo para mais um tema incómodo, que havia de fazer subir o tom do jogo, mais adiante. Catarina Martins pediu a Costa para “fazer o que o Parlamento não fez até ao fim”: “suspender” a lei dos despejos de famílias que não estão a conseguir cumprir com o pagamento da renda de sua casa. Aí Costa pegou na bola e rematou contra outro adversário, Assunção Cristas do CDS: A “visão liberal da habitação tem mostrado ser um absoluto falhanço”.

Patrício salva a equipa. Cristas tocava no fogo

55′ – Assunção Cristas segura a bola atirada por Costa, mas não o tenta fintar pelo lado da habitação. Prefere avançar para outra zona do terreno, para o questionar sobre o envelope disponível para a Política Agrícola Comum e para a coesão. Mas a jogada não surte grande efeito. A líder do CDS tenta, então, outra tática: pedir um comentário de Costa às conclusões do Observatório do Sistema de Saúde sobre o estado do setor. Cristas diz que “se está a regredir” e Costa contrapõe números: “Mais oito mil profissionais, 19 mil cirurgias, mais recursos e mais produção do que tínhamos” quando o atual executivo assumiu funções. “Não é suficiente, pois não, é por isso que vamos continuar a recuperar”, diz.

Nesta altura, no campo de Moscovo, Rui Patrício salva uma bola atirada à direta, esticando-se para lá de todos os limites. Da direta parlamentar, Costa ouvia o último remate de Cristas e o caldo entornava-se. A deputada do CDS diz a palavra “habitação” — a tal que Catarina Martins já tinha usado e que é sensível para a líder do CDS — e do lado de lá do plenário, onde se senta a esquerda, começaram os apartes sobre a herança de Cristas, que enquanto ministra foi responsável máxima pela revisão da lei das rendas. A líder do CDS trazia um caso alinhado: um imóvel (T2) da Segurança Social cuja licitação (para arrendamento) está muito acima dos mil euros. “É isto a renda acessível e a habitação para todos?”.

Aqui o debate aquece. Costa atira: “De habitação é melhor nem falarmos”. “Recordo bem o desprezo com que me recebeu, como presidente da Câmara de Lisboa, quando era ministra, e a Helena Roseta, desprezando tudo o que lhe dissemos que ia acontecer e a calamidade social” que a lei das rendas estava a provocar. Cristas já não tinha tempo disponível para responder, mas pediu a defesa da honra para se queixar do uso da expressão “calamidade social”. “Não existiu porque protegemos o que tínhamos de proteger”, justificava-se. E depois atacou Costa: “Eu não tenho duas caras. Não lhe digo uma coisa a si quando é presidente da Câmara. Já eu, sei muito bem o que dizia a mim, o que dizia na rua para ganhar votos e o que dizia aos investidores privados”. A partida aquecia, mas nada comparado com o que já se passava na Rússia aos 70 minutos de jogo.

Fernando Santos mexe no meio campo e Jerónimo sobe a pressão

80’ – João Mário fez um jogo apagado, não conseguiu segurar o meio campo português e também não estava a conseguir ajudar na passagem para o ataque — que pouco existiu na segunda metade do jogo. Com 1-0 no marcador, vantagem para Portugal, foi ali, a meio do campo, que o selecionador decidiu reforçar a equipa. Entrou Bruno Fernandes, mas a entrada do médio não afastaria a presença de Marrocos perto da zona de Raphael Guerreiro, José Fontes, Pepe e Cedric. Um livre, aos 79 minutos, e o país voltava a ficar em suspenso com a possibilidade de um empate.

No plenário, a pouco mais de dez minutos do fim do jogo parlamentar, era Jerónimo de Sousa quem  mantinha a pressão alta sobre o Governo. Os temas sucediam-se, como que remates, uns atrás dos outros, que não deixam a equipa respirar de alívio.

O secretário-geral do PCP falou nos fundos europeus, nos incêndios do ano passado, nos problemas no setor da Saúde e nos professores — tudo disparos difíceis de defender. Foi assim: “Vai aceitar cortes” nos fundos comunitários para Portugal? É só “solidariedade”, ou o Governo tem mais para apresentar às vítimas de Pedrógão Grande? E às do fogo de outubro? Para quando mais médicos, enfermeiros e outros profissionais da Saúde, onde a “sustentabilidade” treme com a falta de investimento? E a “instabilidade” na Educação, como joga a nega aos professores com a “reposição de rendimentos e direitos”, esse “fator determinante” da atual legislatura?

Se Costa estivesse na baliza, as luvas do guarda-redes do Governo já estariam quentes com todas as bolas que tinha para travar. Portugal, garantiu o primeiro-ministro, não aceita a proposta de Bruxelas, nos moldes em que ela está hoje. E, sendo certo que há um novo “programa nacional de coesão territorial” a caminho, “temos de ter noção da dimensão da tragédia e compreender que o esforço tem de ser continuado”, desviou Costa. Saúde? Há mais profissionais, mais consultas, mais cirurgias que no passado, lembrou Costa pela segunda vez (já tinha dito o mesmo a Cristas). É um esforço “continuado” em que cada passo tem de estar “sustentado”. Quando o remate vem com a assinatura dos “professores”, Costa salva o companheiro de equipa Tiago Brandão Rodrigues: “Nunca aceitámos, nunca prometemos” contabilizar nove anos, quatro meses e dois dias em que as carreiras estiveram congeladas. Esta bola passou junto ao poste.

Um livre que não descansou a equipa. Heloísa Apolónia também não

85′ – Heloísa Apolónia começou com os professores, mostrando que não vinha propriamente em auxílio da equipa do Governo. Em Moscovo, aos 85′, os portugueses já só olhavam para o relógio ansiosos pelo apito final, sobretudo depois de um livre perigoso à entrada da área de Portugal que bateu na barreira. No Parlamento, Costa não olhou para o relógio, mas também já não se importava que o jogo terminasse, sobretudo quando Heloísa Apolónia chuta a bola redondinha direita à reforma laboral. “Com quem conta na Assembleia da República para aprovar” a reforma laboral? E isto porque ainda no sábado passado, no semanário Expresso, o secretário de Estado do Emprego, Miguel Cabrita, mostrava que o Governo está a contar com o PSD para isso.

Com a bola em terreno perigoso, Costa fez daquelas tiradas airosas e, sem fazer falta, respondeu-lhe que conta “com todos os que querem combater a precariedade”. Não deixou a parceira contente, que deixou um aviso para o futuro: “Custa-me que esteja a fazer tantos acordos com o PSD, isso deve fazer o país refletir e o Governo também”. Mas nem assim — e afirmando que não será com os Verdes que o Governo vai poder contar para, no dia 6, fazer passar no Parlamento, a reforma laboral acordada com os parceiros (exceto CGTP). Já Costa insistiu na finta: “O que me custa acreditar é que vá votar contra uma proposta de lei que reduz os fundamentos do recurso a contratos a prazo, que limita renovações dos contratos a prazo e elimina o banco de horas individual e grupal e fundamenta a negociação coletiva”. Mas nada feito, desta vez os parceiros dificilmente estarão do mesmo lado.

O outro jogo foi sofrido para Portugal, mas a vitória chegou no fim. Já Costa não conseguiu mais do que um empate, apesar de ter dominado boa parte da partida. E no final do jogo teve Assunção Cristas, e não o Presidente da República, na (espécie de) flash interview nos Passos Perdidos — a líder do CDS desafiou o primeiro-ministro para um debate sobre as rendas. Marcelo Rebelo de Sousa, “sofreu que se fartou”. Mas isso foi no outro jogo.