Unicórnio de peluche, golfinho insuflável, banana gigante, árvore com olhos, cobra-capelo, garrafa com ecstasy. E também uma ventoinha chamada The Melting Fan, uma ventoinha a sério, com quem a personagem The Gisela fala da tristeza que lhe causam os problemas do mundo. No novo espetáculo do coletivo Teatro Praga os objetos são personagens principais e The Gisela é Gisela João, que assume o papel de atriz pela primeira vez.Jângal” e tem estreia marcada para terça-feira no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa (até domingo, 1 de julho).

“É a primeiríssima vez que estou como atriz, nem na escola tinha experimentado”, contou a fadista ao Observador. “É um desafio enorme que me obriga a sair da zona de conforto, embora tenha o conforto de estar a trabalhar com amigos e pessoas que já conheço há alguns anos”, acrescentou.

Gisela João estreou-se nos discos em 2013 e nessa altura conheceu um dos membros do Teatro Praga, o encenador André e. Teodósio, que acabaria a ajudar na construção cénica dos concertos que deu nos Coliseus de Lisboa e do Porto. A ideia de trabalharem juntos em teatro surgiu desde logo, mas só agora conseguiram acertar as agendas.

O que é “jângal”

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Já não se usa, mas está nos dicionários. “Jângal” quer dizer selva, floresta, mata densa, local ermo. Não se diz “a” jângal, mas sim “o” jângal”, substantivo masculino. E o plural é “jângales”, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Também se pode usar “o jângala”.

O som faz lembrar “jungle”, palavra inglesa para selva, precisamente porque “jângal” chegou ao português pela língua inglesa. E chegou à língua inglesa através do hindi, que por sua vez bebeu no sânscrito.

A palavra começou a ser utilizada em Portugal por volta de 1839, informa o Houaiss. Em 2018, é título do espetáculo que o coletivo Teatro Praga estreia em Lisboa a 26 de junho.

Criado por André e. Teodósio, José Maria Vieira Mendes, Pedro Penim e Cláudia Jardim, “Jângal” é “teatro que desfaz corpos, dilui ontologias e inventa liberdades”, diz a sinopse. Uma proposta de ficção científica que leva ainda mais longe conceitos e ideias que o coletivo tem apresentado em palco nos últimos anos. Isso mesmo foi referido pelos autores, em conversa informal durante um ensaio a que o Observador assistiu há alguns dias.

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“Para não irmos mais atrás, podemos dizer que já no ‘Zululuzu’ [2016] e no ‘Despertar da Primavera, Uma Tragédia de Juventude’ [2017] começámos a pensar a noção de identidade, de existência e de ontologia. Fomos buscar as teorias da identidade, as Teorias Queer, os Estudos Feministas, os Estudos da Negritude, etc., e encontrámos autores e pensadores que refletem sobre o lugar daqueles que não têm direito a existir ou têm dificuldade em existir, por terem pouca visibilidade”, explicou Vieira Mendes. “Agora, alargámos o conceito de identidade e fomos até ao conceito de existência.”

Sendo certo que o Teatro Praga é conhecido por recorrer a conceitos teóricos muito fortes, talvez possa agora dizer-se que chegaram às identidades não-humana. Animismo e transumanismo são palavras que ocorrem. Os autores antes convocam uma teoria do filósofo austríaco Alexius Meinong (1853-1920), segundo a qual se podemos referir coisas que não existem, é porque elas existem de alguma forma.

“O que estamos aqui a pôr em causa é o conceito de existência, o que é que significa existir, e até que ponto a existência pode valer para muitas coisas. A ideia de existência é tão válida para os humanos como para o unicórnio ou para o cyborg”, acrescentou Vieira Mendes. “Pensámos em animismo, sim, mas animismo significa que o humano quer animar o objeto e dar-lhe características humanas. Aqui tentámos outra coisa: que a nossa posição enquanto seres que falam e que produzem este espetáculo seja nivelada com as outras coisas aqui presentes.”

No dizer de Pedro Penim, outro dos elementos deste coletivo, a peça chama a atenção para a necessidade de repensar as práticas teatrais.

“É quase como se estivéssemos a perseguir essa ideia utópica de que o teatro pode desmontar as suas tradições. No fundo, é uma coisa muito característica do Teatro Praga: olhar para nós e para as tradições e tentar pensar e redistribuir”, disse Pedro Penim.

Nos diálogos de “Jângal” paira sempre a ideia de que estamos a viver um apocalipse ecológico, um problema que aparentemente não tem resolução, e aí entra novo conceito teórico, antropocénico (ou atropoceno), a intervenção humana como responsável pelos problemas ecológicos que transtornam o planeta.

Neste particular, sublinha Vieira Mendes, a peça defende que é possível encontrar soluções para além do aturdimento e “uma das formas de o fazer é ganhar outra consciência” em relação aos objetos, o que “implica que a espécie perde centralidade e protagonismo”.

Em termos formais, propõem ao público que imagine estar perante uma pasta de ficheiros de um computador. Uma selva (“jungle”) de ficheiros com canções, textos ou fotografias. Gisela João interpreta fados com letra de André e. Teodósio e base musical eletrónica assinada pela DJ lisboeta Violet. Do princípio ao fim, há situações de humor extravagante, como quando uma árvore artificial, com dois olhos a decorarem a folhagem, é agitada numa plataforma vibratória igual às dos ginásios.

“Jângal” tem duração de uma hora e é falado em inglês, com legendas em português, opção que o coletivo já usou noutras criações (“Israel”, de 2011, por exemplo). Os intérpretes são André e. Teodósio, Cláudia Jardim, Gisela João, Jenny Larrue, Joana Barrios e João Abreu.

Segundo Pedro Penim, os Praga vão apresentar duas novas criações em 2019: “Timão de Atenas”, em abril, no Centro Cultural de Belém, e um um espetáculo “a meio caminho entre o musical e a revista à portuguesa”, em maio, para assinalar os 125 anos do São Luiz.