Título: “A Gargalhada de Augusto Reis”
Autor: Jacinto Lucas Pires
Editora: Porto Editora

Entre as dissidências no grupo surrealista de Lisboa e o primeiro número da revista Távola Redonda passa apenas um ano. Um ano de entrada antecipada ou saída tardia, já que a Távola Redonda parece o epílogo de uma ideia de poeta e as dissidências surrealistas o antelóquio de uma longa série de guerras e discussões. É certo que o poeta-tipo do imaginário surrealista – o maldito – já tem raízes mais antigas; é certo também que o poeta ao modo da Távola Redonda surge mais como um parêntesis sereno num século de frémito do que como uma continuação sem sobressaltos de um modelo antigo.

Porém, podemos considerar, com a pouca precisão de todas as datas certas, esse ano de 49-50 como o ponto de viragem na imagem do poeta. O marginal, maldito, louco, pelintra e pilantra substitui o poeta circunspecto e composto; o homem da rua, o boémio, ultrapassa o académico respeitável na imaginação poética, o arquétipo passa a ser Rimbaud e não Eliot; e no entanto, Jacinto Lucas Pires decidiu resgatar este poeta estilo Távola Redonda, o poeta brando e sem tormentos demoníacos, o poeta que sabe ser banqueiro e tem uma família, o poeta a quem não assusta o quotidiano, o poeta que deixou de ser um lugar-comum para habitar um lugar esquecido da História, e fez dele a personagem central do seu novo romance.

Só por isto, já valeria a pena prestar atenção a este romance. Augusto Reis, sem nunca deixar de ser uma personagem, é quase uma classe, e uma daquelas capazes de trazer fama a um historiador: as classes que atravessam silenciosamente a vida, até que alguém lhes põe um nome e as torna óbvias, gritantes, mais presentes do que nunca.

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Augusto Reis é um poeta reputado como foram vários escritores do antigo regime. Descontada a primeira geração modernista, atraída pelos lados mais frenéticos e corporais do fascismo, a intelectualidade dos anos salazaristas é parecida com Augusto Reis. Os poetas têm um lirismo quotidiano, quase infantil, frágil, que se vê no menino de sua mãe de Fernando Pessoa ou na poesia de Corrêa de Oliveira; a forma é contida, os poemas geralmente curtos, como se vê na Távola Redonda, em Cinatti, em David Mourão-Ferreira, ou em Couto Viana; mais, há, da parte do regime, uma certa preocupação em ocupar os seus intelectuais, ou pelo menos aqueles que não se lhe opõem declaradamente: Nemésio não tem problemas académicos, a revista Panorama alberga uma plêiade considerável de escritores e artistas, Malheiro Dias envolve-se em comemorações oficiais de vária ordem, Joaquim Paço d’Arcos é, como Augusto Reis, um quadro importante numa empresa grande, enfim: esta é também, excluído o fogacho pós-25 de Abril em que a aura de resistente levou alguns escritores à Assembleia, a última geração em que o “Homem de Letras” tem verdadeiro prestígio e relevância pública.

A História de Augusto Reis, poeta, administrador de um Banco, contacto importante na Imprensa e desejo de Salazar para encabeçar o Ministério da Economia, acaba por ser, assim, a História de uma personagem literária desaparecida.

Augusto Reis é interessante, também porque capta não apenas a figura do escritor estado-novista, mas da própria cúpula salazarista. Augusto Reis é, mais do que um político, um técnico, uma figura cimeira de um regime em que as grandes figuras dele não se sentiam inteiramente parte do regime. E se este é um dos problemas clássicos do salazarismo – a estrutura de técnicos apolíticos nunca conseguiu gerar um verdadeiro sucessor, ou pelo menos um rumo claro no pós-Salazar – também é um problema literário interessante. Há qualquer coisa chocante no exílio daquela figura branda e simpática, de um humor discreto mas vivo; o seu envolvimento no regime é-nos contado a partir da sua perspectiva que, vemos pelo rumo dos acontecimentos, é bem diferente da percepção que dele têm os revolucionários; ora, o que é interessante literariamente não é apenas a diferença entre a percepção das nossas acções aos nossos olhos e aos olhos dos outros – aquilo a que Bertrand Russell chamou a “conjugação emotiva”; mais interessante é o choque de nos vermos aos olhos dos outros, sobretudo quando, como é o caso, actos inocentes, completamente técnicos, passam pelo vil colaboracionismo com um regime malvado.

A figura de Augusto Reis é, assim, interessante quer do ponto de vista histórico, quer do ponto de vista literário; porém, é também importante do ponto de vista ideológico. Este Homem que não se defende do saneamento, que não defende as suas acções com mais do que uma fuga tíbia, à maneira de tantos dos figurões do Estado Novo, é o exemplo perfeito de um tipo de conservadorismo muito comum, a que poderíamos chamar o conservadorismo céptico. Isto é, há uma certa classe de cépticos que, por não acreditarem verdadeiramente em nada, se deixam levar pelo curso das coisas. É uma realpolitik, não calculista, mas simplesmente céptica. Por não se poder mudar, por não haver propriamente nada melhor, podemos viver como de costume – afinal, nada significa nada. Em Augusto Reis há, de facto, alguma desta amargura, deste conformismo pessimista que lhe dá algum do seu tom poético. É por este grande plano desolador que a poesia do concreto e momentâneo, em cima da hora, repentista, é tão luminoso, por isso que a sua famosa gargalhada é tão pura. É por ser tão rara que a alegria é tão forte.

O estilo de Jacinto Lucas Pires tira alguma gravitas a este Augusto Reis sobre quem versa o romance. De facto, há um lado descontraído, movimentado, no estilo de escrita que não se coaduna com o intelectual do regime. Jacinto Lucas Pires escreve sempre com os verbos no presente, sem demasiado cuidado com a gramática, com gosto por expressões e gestos infantis, de calão inofensivo de recreio – fintas, bailes, etc. – que encapotam Augusto Reis. A escrita é muito visual – por vezes nem há verbos, apenas indicação de lugares ou cores, como numa didascália de teatro – e, nisso, acaba por contrastar um pouco com a figura do poeta. No entanto, Jacinto Lucas Pires tem também um gozo nítido na pequena metáfora, no revolver discreto de uma palavra, que acaba por passar para o humor de Augusto Reis. Há a mesma estilística luminosa, a tentativa de passar sentimentos a uma linguagem material e uma curiosa forma de olhar para a literatura como literária em si mesma: mais do que uma vez as metáforas têm que ver com a linguagem – o jogador de futebol que não finta, põe mais um advérbio, por exemplo – olhando para a língua e para a literatura como objectos poéticos iluminadores, claros e surpreendentes.

Este estilo, parece-nos, não funciona tão bem com o suburbano Djalma Santos ou com a amargurada Sofia, realizadora de cinema. Jacinto Lucas Pires, claro, percebe-o, e a cadência quando a prosa se debruça sobre um dos dois é mais ácida, mais crítica, mas menos interessante. Sofia acaba por ser uma personagem funcional, o ponto de onde sai o enredo mas que de alguma forma está fora dele. Assim, a história dela aparece como um corpo estranho ou, pelo menos, não tão necessário; Djalma é uma personagem bondosa, cercada por um cenário desolador que não o contamina mas, apesar da contradição exterior mais acentuada – o jovem de um bairro social que virou poeta – também menos complexa. Estas, aliás, são personagens dependentes da grande força que perpassa o livro – o poeta Agusto Reis, em quem, apesar de todo o cinzento que o rodeia, de toda a escuridão que lhe aperta a alma, ainda luz alguma coisa.