Num mundo perfeito, a fotografia do aperto de mão entre Marcelo e Trump seria tirada por alturas do 10 de junho, quando o Presidente dos Estados Unidos da América estava a surpreender positivamente – coisa rara em Trump – nas vésperas do encontro histórico com o líder da Coreia do Norte.

Por essa altura, Marcelo estava nos Estados Unidos a celebrar o dia de Portugal e a visita à Casa Branca fecharia a festa com chave de ouro.

Mas, precisamente por causa dessa cimeira com Kim Jong-un, a agenda estava bloqueada e Marcelo voltou para Lisboa com nova data: 27 de junho.

O Presidente da República prepara-se assim para regressar aos Estados Unidos pela segunda vez num mês, para finalmente ser recebido por Donald Trump. Azar dos azares, o encontro vai acontecer quando Trump está novamente na mó de baixo perante a comunidade internacional por causa da separação das famílias de imigrantes ilegais junto da fronteira com o México – com imagens chocantes de crianças enjauladas em centros de detenção – e pela decisão de retirada da comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Visto de fora, poderia pensar-se que é preciso estômago, e o de Marcelo Rebelo de Sousa não tem andado bem por estes dias. Mas a diplomacia portuguesa é de espírito pragmático. Marcelo tem já, aliás, uma coleção bem composta de fotografias com figuras polémicas da política internacional: de Fidel Castro a Vladimir Putin, passando pelo presidente brasileiro, Michel Temer, e pelo presidente do Egipto, Abdel Fatah al-Sisi.

Prioridades são prioridades, e se no plano diplomático as relações com os Estados Unidos da América são vistas como um dos principais pilares da política externa portuguesa, a fotografia lá se fará na quarta-feira, na Sala Oval, ao início da tarde de Washington, hora do jantar em Lisboa.

Amigos, amigos, divergências à parte

Sobre as questões mais acesas da imigração, não se deverá ouvir uma palavra na reunião entre os dois homens. Do lado português, a posição oficial é a de que essas são decisões internas dos Estados Unidos e não cabe ao Presidente português pronunciar-se sobre a política doméstica de um país aliado. Ao Observador, fonte da Presidência lembra contudo que Portugal tem uma posição clara sobre os refugiados e que o próprio Marcelo Rebelo de Sousa fez referência a isso no discurso do 10 de junho, em Ponta Delgada, nos Açores, ao dizer que Portugal abraça “quem chega, migrantes ou refugiados”. Também o governo deixou claro o ponto de vista português sobre essa matéria quando, num debate quinzenal no parlamento, António Costa defendeu que a “separação de menores choca qualquer um e é absolutamente inadmissível, seja na fronteira dos EUA seja em qualquer outra fronteira”. E mais não se ouvirá.

Se Lisboa foi moderada no tom, da comunidade internacional choveram críticas duras que atingiram Washington em cheio. Não foi, por isso, coincidência que, por esses dias, os Estados Unidos tenham anunciado a intenção de se retirar do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. O argumentário norte-americano para justificar esta decisão toca nalguns pontos sensíveis para a credibilidade deste órgão fundado em 2006: o facto de ter entre os seus membros países que reiteradamente violam os direitos humanos e o número desproporcionado de condenações a Israel (mais de 60 condenações desde a criação do Conselho), face às zero condenações à Venezuela, à China, à Rússia, à Turquia ou à Arábia Saudita.

Também aqui Portugal não alinha na posição norte-americana, e num comunicado emitido pelos Negócios Estrangeiros, o governo diz ter tomado conhecimento desta decisão “com pesar”, qualificando-a como “uma perda para todos” e reforçando o “empenho” e a “valorização” atribuídos pelo país ao papel desempenhado pelo Conselho. Um posição partilhada pelo Presidente da República.

“Portugal é um firme defensor de um sistema multilateral reforçado”, pode ler-se também no comunicado, que pede que Washington reconsidere a decisão, fazendo eco das palavras de Marcelo no 10 de junho, quando elogiou o  “multilateralismo realista” contra “o unilateralismo revivalista”.

Se este era um recado para o outro lado do Atlântico, foi feito à maneira da diplomacia de Lisboa, num português suave que sabe misturar o cravo e ferradura, já que Portugal mantém que os Estados Unidos da América são “um país amigo, aliado e pioneiro na defesa dos direitos humanos e liberdades fundamentais”.

Se juntarmos a tudo isto as questões climáticas e o comércio internacional, ficam evidentes as matérias na ordem do dia acerca das quais há grandes discordâncias. Conseguirão Trump e Marcelo evitar estes assuntos? A resposta é um claro sim.

“Dois amigos não têm de concordar em tudo para serem amigos” é a explicação que mais se ouve nos corredores diplomáticos quando a pergunta fica no ar. E depois há uma questão de tempo, como expôs o ministro Augusto Santos Silva esta segunda-feira em entrevista ao DN: “O tempo é precioso nestes encontros, não falamos sobre assuntos em que estamos 100% de acordo, ou 0% de acordo, não adianta nada”.

Lajes no bom caminho

Falarão de quê, então? Santos Silva, que passou os últimos dias em Washington, já preparou o caminho para a visita de Marcelo Rebelo de Sousa. Manteve encontros com o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, e com o conselheiro nacional de segurança, John Bolton.

Dessas reuniões saíram sinais encorajadores para o andamento das negociações sobre a base das Lajes, na ilha Terceira, nos Açores, onde os americanos mantêm presença militar, embora cada vez mais reduzida.

De acordo com o ministro, estão resolvidas “todas as questões relativas aos trabalhadores” e os problemas das infraestruturas estão “em vias de resolução”. Quanto ao impacto ambiental, para já, há “progressos”.

Portugal defende que os Açores se devem manter como “eixo essencial da cooperação entre Portugal e os Estados Unidos, com o projeto do Air Center e o projeto do Centro de Defesa Atlântica”, disse também o ministro.

Segurança e Defesa são duas áreas onde há cooperação bilateral e estão sempre na lista de temas acerca dos quais Portugal e Estados Unidos partilham informações e pontos de vista. Desde as relações com a China, passando pela questão da Coreia do Norte ou o Afeganistão, e claro, pela importância da pertença à NATO. Em meados de junho, o comunicado da Casa Branca a anunciar o encontro Marcelo/Trump fazia, aliás, referência a isto mesmo, descrevendo Portugal como “um importante aliado na NATO, parceiro no Afeganistão e nas regiões africanas em crise”.

Ciência e tecnologia, energia, nomeadamente o gás natural, cibersegurança e até o combate aos incêndios completam a agenda das reuniões bilaterais.

A maior comunidade portuguesa e luso-descendente no estrangeiro

É precisamente nos Estados Unidos da América que reside a maior comunidade de emigrantes e luso-descendentes fora de Portugal. Quase um milhão e meio. E é esta comunidade que Marcelo Rebelo de Sousa já identificou como um “ponto central da conversa” com Donald Trump.

O roteiro desta curta passagem por solo norte-americano vai começar precisamente por aí, com um encontro logo à chegada com a comunidade portuguesa residente em Washington, e nos estados da Virginia e de Maryland.

A visita coincide com o final das celebrações do Mês de Portugal nos EUA, cuja primeira edição se realizou este ano e que Belém considera um grande sucesso, com 135 iniciativas em 12 estados, todas relacionadas com Portugal. Terminar o mês com um encontro entre os presidentes é visto como um sinal da amizade que une os dois países.

Uma amizade que vem de longe. Marcelo vai realçar isso mesmo com uma oferta especial que entregará a Trump: um fac simile da carta da Rainha D. Maria I na qual o Reino de Portugal reconhecia a independência dos EUA, em fevereiro de 1783. Portugal foi o primeiro país neutral a fazê-lo e Marcelo quer fazer valer esse facto junto do inquilino da Casa Branca.

De aliado histórico, de país de confiança dos Estados Unidos da América, Portugal quer afirmar-se como uma nação onde vale a pena fazer investimentos e que, por sua vez, quer continuar a investir do outro lado do Atlântico.

Mesmo que as escalas de um e de outro não sejam comparáveis. Portugal conta quase nada para o PIB dos EUA, mas os Estados Unidos são um mercado muito importante para a economia portuguesa: são o principal destino das exportações portuguesas fora da União Europeia, com grande contributo do turismo, com o número de turistas norte-americanos a crescer acima dos 10% ao ano.

É este o caderno de encargos que Marcelo leva até Washington numa visita de apenas 2 dias. Promover Portugal como “uma voz junto dos Estados Unidos, a favor do reforço do eixo transatlântico, seja a nível geopolítico, como também ao nível dos valores.” Uma aproximação que em Belém (e também em São Bento) é vista como sendo boa para os dois países e boa para os dois povos.

Num mundo perfeito seria este o momento ideal? Há quem defenda que sim, que esta é a altura exata para sublinhar aquilo que nos une, em vez daquilo que nos separa. E há, claro, quem defenda que não. Mas, como o próprio Donald Trump tem feito questão de mostrar exaustivamente, o mundo também não é um lugar perfeito.