Enviado especial do Observador à Rússia (em Saransk)

Ontem tinha ficado a promessa, hoje percebe-se que é mesmo uma certeza. Existe uma certa cultura de desporto em Saransk (e agora pasme-se: aquilo que aqui valorizam mesmo muito, mais do que nas outras cidades russas, é a marcha, mas se falarmos de Inês Henriques, João Vieira ou Ana Cabecinha é um bocado igual ao litro), mas esta Mordovia Arena, que ficará com pouco mais de metade da lotação depois do Mundial, só não será um elefante branco porque serviu como motor de modernização desta parte da cidade, como se percebe pelos edifícios mais próximos do recinto e, mais à frente, pelo centro. Em tudo o resto, nada a ver com o que tínhamos passado em Sochi ou em Moscovo, com tudo o que isso tem de bom e de mau para quem aqui chega.

Ontem, dia de conferências, o que saltou mais à vista foi a preocupação de cumprir todas as ordens até com excesso de zelo. Um exemplo: em qualquer estádio existe um ponto junto do centro de imprensa onde todos os fumadores podem estar, incluindo os responsáveis da FIFA. É ali e só ali, mas existe o ali. Aqui nem por isso: mais uma saída do estádio, mais uma revista apertada, mais um trajeto de uns minutitos a levar com os 30 graus de um sol que quase queima. Hoje, dia de jogo, as restrições foram de outro nível: o raio muito maior de metros em que está proibido o acesso de quase todas as viaturas (a não ser as institucionais, claro). Ainda falta muito para a hora do jogo, mas adeptos nas redondezas, nem vê-los.

Capital da Mordóvia, Saransk, uma cidade que teve o seu boom na altura das grandes fábricas do regime soviético, recebe jogos do Mundial quando ainda não tinha chegado ao ponto de estar preparada para isso. Não que as pessoas não sejam simpáticas e acolhedoras, mesmo com aquele pertinente problema de perceberam pouco ou nada de inglês, mas porque, a nível de infraestruturas, existe ainda um desnível grande entre oferta e procura. E é por isso que, à saída do pequeno aeroporto onde só existe um tapete (o mesmo que, este domingo, deixou Ricardo Araújo Pereira a sorrir impressionado com os cânticos de dezenas de iranianos que se deslocaram nesse voo para cá, quando estávamos todos à espera das malas), existem dezenas e dezenas de locais com papéis e cartazes para alugar apartamentos, alguns com imagens e tudo. Em Moscovo e Sochi, não foi por causa do Mundial que os preços variaram; aqui, tudo é uma oportunidade para fazer negócio e com preços inflacionados.

É também nesse contexto que existe quase um choque para um lado e para outro da Mordovia Arena: saindo do centro de imprensa para apanhar a ponte do lado direito, aquilo que encontramos são muitos prédios e bairros mais modestos, de pessoas honestas, que trabalham, mas de uma classe mais baixa, numa zona mais escura; saindo para o lado contrário, e além das centenas de habitações de diferentes cores que ali foram edificadas para chamar a classe média alta, temos também a zona do centro, que sendo mais pequena consegue deixar boas recordações a quem por lá passa. No meio de tudo isto há o cidadão mais conhecido desta cidade que terá recebido o Mundial pela ligação muito próxima entre Putin e o pai do governador da região da Mordóvia: o ator e cineasta francês naturalizado russo Gerard Depardieu, que se mudou para cá depois da polémica em 2013 a propósito da tributação fiscal gaulesa, recebeu uma casa (ou casarão) e tenta desenvolver a parte cultural de Saransk (deu já nome a um centro cultura, mas quer mais) no pouco tempo que por cá anda.

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Como contou recentemente o The Independent, este é o local que não tem direito sequer a um parágrafo das 800 páginas do Lonely Planet sobre a Rússia. O local que a FIFA descreve da seguinte forma: “Existem muitos museus. Os maiores incluem o Museu de Estudos Regionais da República Unida da Mordóvia e o Museu da Cultura da Moldávia, em Saransk”. O local que mereceu a seguinte pergunta no TripAdvisor: “Como é que um Mundial pode ser dado à Rússia ou ser colocado numa cidade como Saransk se eles nem sequer têm quartos de hotel?”. Havendo algum fundo de razão no que pintam, a realidade a que quem cá está assiste não tem nada a ver (dentro de um espírito de Campeonato do Mundo, mais aberto do que é normal). E é nesta realidade, com muito calor, que Portugal vai lutar pelos oitavos de final esta noite contra o Irão.

A Seleção traz duas grandes vantagens em relação ao Irão depois da última jornada: por um lado, e depois da derrota com os asiáticos, sabe que joga com dois resultados para aceder aos oitavos de final; por outro, teve a benesse de poder registar e trabalhar à posteriori aquele tipo de exibições mais desinspiradas que acaba sempre por acontecer a qualquer equipa mais forte num Mundial em cima de um triunfo frente a Marrocos. E é na reação que os jogadores tenham a esses 90 minutos sem a chama do costume que está a base do sucesso na última jornada da fase de grupos. Em termos técnicos, Portugal tem jogadores com tanta qualidade que podem jogar de “sapatos altos” e espalhar classe; hoje, se esses elementos não calçarem as botas mais operárias, correm o risco de sofrer. Numa frase, se a Seleção correr e quiser tanto como o Irão, dificilmente não ganha.

É também isso que percebe nas equipas apontadas esta segunda-feira pelos vários meios de comunicação: não se trata tanto de mexer em jogadores mas mais de melhorar a forma de abordar o encontro. Ainda assim, Fernando Santos, que trocou apenas Bruno Fernandes por João Mário entre Espanha e Marrocos, pode promover outras alterações. No meio-campo, com o regresso do médio que rescindiu com o Sporting ou com a inclusão de um elemento mais de batalha, como Adrien ou Manuel Fernandes (até porque Moutinho esteve adoentado e falhou alguns treinos); e no ataque, com uma possível troca que não se confirmou contra os africanos entre Gonçalo Guedes e André Silva. Também aqui, é uma questão de estratégia: será mais fácil chegar à baliza do Irão com a mobilidade do jogador que se destacou esta temporada no Valencia ou com o maior peso do jogador do AC Milan para poupar um pouco mais Ronaldo ao choque? A ideia que Portugal montou para o jogo irá definir as peças que entram de início, mas não há modelo de jogo, esquema tático e identidade que resista à desconcentração, falta de confiança e ansiedade que fizeram com que a Seleção Nacional perdesse o controlo da última partida frente a Marrocos.

É por isso que, à boleia do longo currículo da estrela local, Gerard Depardieu, e do filme que protagonizou com Leonardo Di Caprio, John Malkovich, Gabriel Byrne ou Jeremy Irons em 1998, a Portugal não interessa nem o Homem nem a Máscara (embora todos os olhos estejam centrados em Cristiano Ronaldo), só tem de ser de Ferro. Se for, qualifica-se para os oitavos, onde poderá cruzar ou com a Rússia ou com o Uruguai, que decidem esta tarde o primeiro lugar no grupo A; se não for, vai enfrentar mais dificuldades do que aquelas que já está à espera. E apoio não vai faltar ao Irão, como se viu no aparato ao pé do hotel da Seleção que levou mesmo Ronaldo a pedir silêncio à janela, o que já levou os asiáticos a pedirem desculpa.