Uma empresa detida por três luso-angolanos, a Norsudtimber, está a obter madeira na República Democrática do Congo violando as leis do país. Essa é a denúncia feita pela Organização Não-Governamental (ONG) britânica Global Witness (GW), no seu relatório “Total Systems Failure”, divulgado esta terça-feira. No relatório a que o Observador teve acesso, é ainda descrito que três empresas portuguesas poderão ter adquirido madeira à Norsudtimber, não cumprindo a verificação devida por lei. As empresas em questão têm vendido material e serviços ao Estado português nos últimos anos.

No centro da polémica está uma empresa de extração de madeira, a Norsudtimber, que opera em grande escala na República Democrática do Congo (RDC). De acordo com a GW, esta é a maior empresa da área na RDC em termos de área de exploração (40 mil quilómetros quadrados) e o seu negócio representa 60% das exportações de madeira do país. A Norsudtimber está legalmente estabelecida no Liechtenstein, mas três dos seus últimos beneficiários (ou seja, os verdadeiros donos) são três empresários luso-angolanos: os irmãos José Albano Trindade, João Manuel Trindade e Alberto Pedro Maia Trindade.

A GW estabeleceu que 18 dos 20 contratos entre as subsidiárias da Norsudtimber (a Sodefor, a Forabola e La Forstière du Lac) e o Governo de Kinshasa foram assinados por um dos três irmãos Trindade.

O problema? A GW denuncia que esta empresa está a obter madeira “de forma ilegal em 90% das suas explorações, com a cumplicidade do Governo [da RDC]”. Para além disso, a ONG denuncia que o cumprimento das diligências devidas (investigação para garantir que um negócio cumpre todas as obrigações legais) em “portos de entrada essenciais” como “França e Portugal” é “irregular e fraco” — e aponta empresas específicas que poderão estar a importar madeira obtida de forma ilegal na RDC.

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Quais são as ilegalidades em causa?

De acordo com a GW, a Norsudtimber está a violar a lei da RDC, nomeadamente o Código da Floresta do país. Em concreto, as violações são as seguintes:

  • falta de planos de gestão a 25 anos (em 8 das 20 concessões);
  • exercício de atividade fora dos perímetros autorizados (em 6 das 20 concessões);
  • extração de madeira há quatro anos consecutivos (em 1 das 20 concessões);
  • falta de atividade durante dois anos consecutivos (em 9 em 20 concessões).

A ONG garante que qualquer uma destas violações é suficiente para serem anulados os contratos entre a Norsudtimber e o Estado da RDC, acusando a empresa de estar a violar a lei. Algumas das acusações, como a que se refere ao perímetro das explorações, são sustentadas no relatório com a apresentação de imagens de satélite.

As subsidiárias Sodefor e Forabola responderam às acusações feitas no relatório declarando que “não têm fundamento”. No que diz respeito aos planos de gestão, dizem que têm sido “objeto de diálogo” com o ministério do Ambiente e garantem que serão apresentados ainda em 2019. Relativamente às restantes irregularidades, ora declaram que estão no cumprimento da lei (no caso dos perímetros), ora admitem “um erro” (relativo à exploração de quatro anos consecutivos). Numa das práticas em causa (falta de atividade durante dois anos) admitem a prática, mas dizem que só pode levar à devolução das explorações ao Estado se este enviar um aviso formal.

A GW apresenta ainda outras críticas às subsidiárias da Norsudtimber. Para além de destacar a possível destruição futura da floresta da RDC devido à exploração intensiva, acusa ainda estas empresas de estabelecerem acordos pouco transparentes com as comunidades locais. A lei congolesa determina o estabelecimento dos fundos de desenvolvimento, em que por cada metro cúbico de madeira adquirida as empresas devem contribuir com 2 a 5 dólares para um fundo local.

A GW diz que as negociações para o estabelecimento destes fundos são “fortemente enviesadas a favor das empresas”. Já a Sodefor e a Forabola  asseguram que mantêm “um diálogo constante e transparente com as comunidades no que diz respeito aos acordos sociais”. Recorde-se que em 2007 a revista Visão revelou dados da organização Greenpeace que davam conta de acordos entre a Sodefor e algumas comunidades locais onde a concessão da exploração de madeira era atribuída em troca de bens como cerveja ou açúcar.

O Observador tentou contactar os três irmãos Trindade, bem como a Sodefor, mas até ao momento não obteve resposta.

Madeira ilegal terá chegado a empresas portuguesas que fornecem ministérios

O relatório da GW denuncia ainda que parte desta madeira obtida de forma alegadamente ilegal poderá ter chegado à União Europeia e, nomeadamente, a Portugal. De acordo com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, Portugal importa mais de dois milhões de metros cúbicos de madeira por ano, a grande maioria de madeira de folhosas. Cerca de 60% das importações deste tipo de madeira para Portugal vem da RDC.

O ICNF também explica que todas as empresas que importam madeira para Portugal estão sujeitas ao Regulamento da União Europeia para a Madeira e Produtos de Madeira (REUM), que proíbe a importação de madeira que tenha sido obtida de forma ilegal. O Regulamento coloca o ónus nas empresas importadoras, que devem respeitar o “sistema de diligência devida”, estabelecida no artigo 6.º do Regulamento, a fim de confirmar a origem da madeira.

A GW detetou duas empresas portuguesas que obtiveram madeira das explorações da Norsudtimber que estão irregulares na RDC e uma terceira empresa de madeiras com laços à Norsudtimber. Todas elas venderam material e serviços ao Estado português nos últimos anos.

Num dos armazéns da J. Pinto Leitão em Portugal, a GW encontrou alguns troncos de madeira identificados como sendo de concessões da Sodefor e da Forabola que não estão a cumprir a regulamentação local. Não há registos de compras oficiais feitas pela J. Pinto Leitão a estas empresas, o que leva a GW a concluir que a madeira deverá ter sido vendida através de entidades offshore. A ONG contactou a empresa a fim de saber se foram efetuadas as diligências devidas sobre estas madeiras, mas não obteve resposta.

No Portal Base é possível verificar que J. Pinto Leitão vendeu material à Base do Alfeite em dois momentos: uma primeira venda de “pranchas de madeira de Kambala” no valor de quase nove mil euros em janeiro de 2010; e compra de “madeira cambala em toro” para o Navio-escola Sagres por menos de seis mil euros, adquirida em outubro de 2015. A madeira cambala, também conhecida por Iroko, é uma das espécies presentes na RDC.

Uma segunda empresa, a Madeicentro, também tinha nas suas instalações madeira identificada como sendo de concessões irregulares da Sodefor e da Forabola. A GW também não conseguiu encontrar a venda nos registos aduaneiros. Contactada pela ONG, a Madeicentro respondeu: “Nunca comprámos madeira diretamente à Sodefor e não sabemos se alguma vez comprámos madeira da Sodefor.”

A Madeicentro fez um único negócio com o Estado português, em setembro de 2017. Tratou-se de uma “empreitada de fornecimento e montagem de soalhos e rodapés do piso 1 e 2 da ala nascente” do ministério da Defesa. O valor do negócio foi de quase 47 mil euros.

A última empresa em causa, a Maciça, produz portas e janelas com madeira vinda da Bacia do Congo. A GW não encontrou qualquer informação de que a Maciça terá madeira obtida de forma ilegal pela Norsudtimber. No entanto, a ONG destaca as “relações próximas” entre as duas empresas. Para começar, quando a Maciça foi criada, em 1995, 75% das ações eram detidas pela Norsudtimber. O seu diretor até 2015 foi Daniel da Graça Moreira Dias, atual presidente do Conselho de Administração da Norsudtimber. O administrador atual da Maciça é Ivo Monteiro — filho de Rui Monteiro e neto de António Monteiro, empresários que, de acordo com a GW, são últimos beneficiários da Norsudtimber, a par dos irmãos Trindade e de outros empresários. O próprio Ivo Monteiro admitiu em entrevista à revista País Económico (Outubro 2017) uma ligação original da Maciça a uma “empresa fornecedora de madeiras”.

Destas três empresas, a Maciça é a que tem mais contratos com o Estado português. Para além de acordos com vários municípios (Setúbal, Celorico da Beira, Serpa), desde 2012 que conseguiu uma série de contratos com dois ministérios: o dos Negócios Estrangeiros e, mais recentemente, o da Defesa.

Em dezembro de 2012, a Maciça substituiu a caixilharia de madeira no Palácio das Necessidades (no valor de cerca de 92 mil euros) e no Palácio da Cova da Moura (cerca de 99 mil euros). Em outubro de 2013, voltaria a ser contratada pela secretaria-geral do ministério dos Negócios Estrangeiros, desta vez para substituir a caixilharia do Convento das Necessidades, com um custo de cerca de 150 mil euros. Em abril de 2014, nova contratação: “substituição de caixilharia de madeira da Ala Nascente” do próprio ministério (cerca de 150 mil euros mais uma vez). O contrato feito em 2013 para o Convento das Necessidades foi assinado pelo próprio Daniel da Graça Moreira Dias, atualmente presidente do Conselho de Administração da Norsudtimber.

Em setembro de 2017, a Maciça conseguiu um contrato desta vez com o ministério da Defesa, comprometendo-se a substituir caixilharias de dois pisos desta ministério no Terreiro do Paço, com um custo de cerca de 27 mil euros. Já em 2018, mais concretamente em março, o mesmo ministério voltou a contratar a Maciça para substiuir a caixilharia de um dos pisos do ministério, o 2, que já tinha sido intervencionado no ano anterior. Desta vez, a obra teve um custo inferior a 22.500€. A própria GW refere esta contratação recente no seu relatório, instando o ministério a averiguar se a Maciça cumpriu as diligências necessárias.

Todos os contratos destas três empresas com o Estado português (J. Pinto Leitão, Madeicentro e Maciça) foram atribuídos por ajuste direto. O Observador contactou os ministérios da Defesa e dos Negócios Estrangeiros para averiguar se estão a par das suspeitas sobre a origem da madeira utilizada por estas empresas, mas até ao momento ainda não obteve resposta.

Contactado pelo Observador, o ICNF, órgão responsável pela fiscalização do cumprimento do REUM, declarou não ter conhecimento das alegações levantadas pela GW relativamente a estas três empresas, mas confirmou que foram alvo de fiscalização “no âmbito do plano anual de fiscalização” e que nestas ações não foram encontradas “evidências de qualquer irregularidade”, tendo o ICNF apurado que nelas “o sistema de diligência devida se encontra adequado aos requisitos do regulamento comunitário”. O ICNF acrescenta, no entanto, que um reforço da fiscalização pode acontecer caso haja “preocupações fundamentadas” apresentadas por outras entidades.

Uso de offshores para “evitar escrutínio”

Não é a primeira vez que a Norsudtimber se vê envolvida em denúncias de ONGs. Para além dos casos denunciados pela Greenpeace à Visão em 2007, em 2011 a Quercus e a Greenpeace alertaram para casos de entrada de madeira ilegal em Portugal, vinda precisamente da RDC. “Muito provavelmente são operadores estrangeiros com representações em Portugal”, declarou à altura Domingos Patacho, da Quercus, à agência Lusa.

Uma das empresas que a Quercus afirmou à altura importar madeira ilegal para Portugal é a Neuholz Investment Ltd. Esse nome surge agora no relatório da GW: é uma das estruturas offshore que a ONG crê ter sido criada pela Norsudtimber para “esconder os compradores finais da madeira e, crucialmente, o destino final bem como os beneficiários dos pagamentos”. “Ao operar através de uma rede opaca de empresas-fantasma de exportação, a Norsudtimber protegeu as suas atividades e identidade do escrutínio”, pode ler-se no relatório.

Já em 2011, a Sodefor tinha reagido às acusações levantadas por ONGs como a Greenpeace, destacando que tem certificação FSC de Gestão Florestal, mas reconhecendo que lhe faltava a certificação total. “Exige estudos sociais, ações várias sobre a zona de floresta a proteger e compromissos com a população que são muito exigentes”, declarou à altura à agência Lusa Pedro Trindade, um dos três irmãos Trindade, a propósito do lançamento da empresa num novo mercado, o da construção de casas em Angola.

Em 2015, uma porta-voz da Sodefor, Filomena Amaral, declarou ao Wall Street Journal que é “inevitável” cometer erros, mas negou qualquer ilegalidade na ação da empresa: “Estamos a cumprir com as leis nacionais e com as normas e regulações internacionais”, disse a porta-voz. “Não conseguimos perceber porque é que importar madeira da nossa empresa representaria qualquer risco de incumprimento da lei para qualquer empresa no mundo.”

A República Democrática do Congo vive atualmente um ambiente de asfixia democrática, agravado desde dezembro de 2016, quando Joseph Kabila recusou abandonar a presidência após o fim do seu mandato. Esse ambiente, destacam organizações como a GW, tem contribuído para o desenvolvimento de atividades pouco claras de várias empresas: “Os ministros não prestam atenção à lei, o Governo está a reprimir as organizações da sociedade civil e as empresas operam como querem com poucas consequências”, pode ler-se no relatório. “Empresas como a Norsudtimber estão a explorar este ambiente.”

Em Kinshasa vigora atualmente uma moratória à emissão de licenças de abate da madeira, mas essa moratória é repetidamente violada. A juntar-se a este cenário, soma-se o facto de a RDC ser um dos países mais corruptos do mundo: está no lugar 161 entre 176 países no ranking da Transparência Internacional.