“Não fiquem em silêncio, porque se vocês ficarem estão a deixar que eles ganhem”. A jovem violada por um grupo de cinco homens auto-intitulado La Manada, durante as festas de São Firmino, em Espanha, falou pela primeira vez, cinco dias depois de terem sido postos em liberdade os agressores condenados a nove anos de prisão, não por violação, mas por abuso sexual. Numa carta tornada pública no programa de televisão espanhol El Programa de Ana Rosa, a vítima alertou para a necessidade de se denunciarem casos como estes.

Ninguém tem que passar por isto. Ninguém precisa de se arrepender de beber, conversar com pessoas numa festa, ir para casa sozinho ou usar uma minissaia . Temos que lamentar toda a mentalidade que esta sociedade tem onde isto pode acontecer a qualquer um”, escreveu.

A jovem pediu também para as pessoas terem “cuidado com o que dizem”. E explicou: “Não sabem quantas vezes eu ouvi falar da ‘rapariga de São Firmino’ sem saber que aquela rapariga estava sentada ao lado deles”. A jovem deixou claro que não é “a rapariga de São Firmino”. “Eu sou a filha, neta, amiga e talvez, esse ‘de’ seja de vocês. Por favor, pensem antes de falar”, pediu, lamentando a sociedade em que, depois de alguém ser violado, fica com o rótulo de violada na testa”.

Não deixou de agradecer aos pais “por encontrarem força de onde não tinham”, aos restantes familiares, amigos e a toda a Espanha que lhe deu “voz” quanto “muitos tentaram” tirar-lhe isso dela. “Gostaria de nunca vos ter conhecido, mas a vida é assim e leva-nos para as melhores pessoas nos piores momentos e isso é por alguma razão.

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O caso de violação La Manada. “Está claro que dor não sentiu”

[Leia na íntegra a carta da vítima publicada no El Programa de Ana Rosa]

Olá a todos e a todos,

Suponho que vão pensar que esta carta é para contar a minha versão da história e a minha experiência, mas não é. Esta carta é de agradecimento. Mãe, pai, obrigada não só pelo apoio, mas por encontrarem força de onde não tinham e por terem-na dado a mim. Obrigada por tudo o que me ensinaram e tudo o que me vão ensinar, mas sobretudo, por não me terem abandonado. Obrigada às minhas tias, avós, tios e primos. Por me fazerem ver que uma família se baseia nisto. Sempre, não importa o que aconteça.

Também quero agradecer ao meu povo, aos meus eleitos, às melhores escolhas que fiz nesta vida. Por me apoiarem, chorarem comigo, ficarem com raiva porque não fazia sentido o que eu sentia. Por rirem, por me fazerem ver que o melhor e o pior da vida devem ser compartilhados, por odiar e acima de tudo amar. Vocês levantaram-me.

Também quero agradecer a todas as pessoas que me ajudaram neste caminho. Gostaria de nunca vos ter conhecido, mas a vida é assim e leva-nos para as melhores pessoas nos piores momentos e isso é por alguma razão. Gostaria de nunca vos ter conhecido, amigos, sinceramente. Mas graças a isto tenho uma pessoa essencial na minha vida. Companheiro de batalha, que eu sei que nunca vou esquecer.

Também quero agradecer a todas as pessoas que, sem me conhecerem, tomaram a Espanha e deram-me uma voz quando muitos tentaram tirar isso de mim. Obrigada por não me deixarem sozinha. Por acreditarem em mim, irmãs . Obrigada por tudo, de coração.

Obrigada a todos que falaram de mim por um segundo para repudiar o que aconteceu. Associações, pessoas da rua, personalidades políticas, celebridades, jornalistas que me respeitam e, em geral, todos os que se preocupam comigo. Obrigada por me fazerem sentir novamente parte da sociedade em que parece que, se és violada, tens que por o rótulo de violada na tua testa. Obrigada por lutarem, gritarem, chorarem e apoiarem esta causa.

Finalmente, para mim o mais importante: denunciar. Ninguém tem que passar por isto. Ninguém precisa de se arrepender de beber, conversar com pessoas numa festa, ir para casa sozinho ou usar uma minissaia . Temos que lamentar toda a mentalidade que esta sociedade tem onde isto pode acontecer a qualquer um. Garanto-vos. Tenham cuidado com o que dizem. Não sabem quantas vezes eu ouvi falar da ‘rapariga de São Firmino’ sem saber que aquela rapariga estava sentada ao lado deles.  A propósito, eu não sou “a rapariga de São Firmino. Eu sou a filha, neta, amiga e talvez, esse ‘de’ seja de vocês. Por favor, pensem antes de falar. 

Assim como estamos mentalizados e não brincamos com doenças, não podemos brincar com violação. É indecente e está nas nossas mãos mudar isso. Por favor, só peço que por muito que não acreditem, denunciem. Posso assegurar-vos que o caminho que devem percorrer não é um prato saboroso, mas o que teria acontecido se eu não tivesse denunciado, pensem nisso.

É muito bom condenar alguns factos, mas todos nós temos que fazer parte da mudança. Pessoalmente, se o meu caso mudou a consciência de uma pessoa ou deu força a outra pessoa para lutar, estou satisfeita.

Para todas as mulheres, homens, meninas, meninos que estão a passar por algo semelhante: vocês podem sair. Vão pensar que não têm forças para lutar, mas vão ficar surpreendidos ao saber a força que os seres humanos têm. Digam a um amigo, um familiar, a polícia,  num tweet, façam como quiserem, mas contem. Não fiquem em silêncio, porque se você ficarem, estão a deixar que eles ganhem.

O caso que levou os espanhóis à rua em protesto

O caso La Manada já aconteceu em 2016 mas continua a gerar polémica. Cinco homens, acusados de violação de uma jovem durante as festas de São Firmino, em Espanha, acabaram condenados, em abril deste ano, a nove anos de prisão. O problema está mesmo aí: os elementos do grupo foram condenados por abuso sexual e não violação — o que justifica penas mais leves.

Os protestos começaram e mobilizaram várias pessoas. Incluindo três juízas espanholas que escreveram uma carta à vítima. “Gostaríamos que não pensassem que depois do que te fizeram vás ficar com sequelas para o resto da tua vida. Não tem de ser assim”, escreveram. E fizeram um pedido: “Que não te passe pela cabeça qualquer espécie de culpa.” “És jovem e corajosa e nota-se que tens em teu redor gente que te ajuda e que gosta de ti”, escreveram ainda.

La Manada. Juízas enviam carta a vítima: “Que não te passe pela cabeça qualquer espécie de culpa”

A polémica que se instalou na altura viria a crescer, quando na passada quinta-feira —  a duas semanas de atingirem limite legal de prisão preventiva — os membros do La Manada foram libertados em regime de liberdade condicional, sob o pagamento de uma fiança de 6 mil euros. Depois de os advogados terem recorrido da decisão, os juízes optaram por libertados.  Três deles pagaram os 6 mil euros e já estão libertados. No total, cumpriram dois anos de prisão preventiva. Os espanhóis voltaram a sair à rua em protesto.